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Estou em Praga para conhecer a cidade natal do grande modernista tcheco Franz Kafka. São 18h30 da tarde, ou será noite? Sopra um vento suave do leste, das estepes russas. A pressão atmosférica é de 18,7 milibares. A umidade relativa do ar é de 43%. Algumas nuvens: cúmulos e estratos prenunciam chuva. O pôr do sol é como um polvo que tinge o horizonte com raios tentaculares e dourados. Sento-me em um banco, frente a frente com a estátua do grande escritor. Súbito, aparece a figura inconfundível de outro escritor que veio para estar entre os medalhões: é Gabriel García Márquez, o bruxo de Macondo. “Ora lá, gente! Enfim conhecerei a cidade do homem que me fez pôr as barbas de molho. Não foi fácil; devo-lhe o Prêmio Nobel.” Os outros convidados estão a chegar para ouvir a leitura do conto Um artista da fome. Esse que ali vem é de casa: Roman Jakobson, o grande linguista e criador da teoria das Funções da Linguagem. Alguns virão do futuro. “Ora, bolas!”, exclama o autor de Cem anos de solidão. “Juro que dei um pontapé no traseiro do tempo e vim!”

Aqui estão os mais fervorosos discípulos de Franz Kafka, que querem ouvir a trágica história. O leitor não pode se esquecer de que a cena se passa no início dos movimentos modernistas. O Kafka moderno envereda pelo realismo fantástico (sua estátua está na esquina da Rua Dushni). Abaixo se vê o Rio Moldávia. A Ponte Carlos o transpõe com certa elegância. Ah! Os famosos autores vêm por ordem: chega o cineasta tcheco Milos Forman, do filme Amadeus.

“Ó, Gabriel! o que fazes aqui na sementeira do nosso Franz?”

“Quero festejar o meu ídolo, sobretudo pelo primeiro parágrafo de A Metamorfose. Esse trecho me fez ser o escritor que sou.”

“Mas, meu caro, hoje conheceremos o conto que está abalando as estruturas de grandes escritores.”

Maravilhosas pontes, que cruzais o plácido Rio Moldávia, que fizestes dos passos de Kafka?

Vem um cidadão italiano, o semiótico Umberto Eco, que acaba de lançar O cemitério de Praga. Este promete. Quem vem lá? Mais um convidado. Quem chamou Milan Kundera, de A insustentável leveza do ser? Sei que ele vem do futuro e a obra é um best-seller, traços de influência ditados pelo grande Franz.

Convido seu melhor amigo e editor de suas obras, Max Brod, para proceder à leitura. Como sabem todos, Kafka foi um escritor à parte, pois traz para a arte moderna o arco-íris da criatividade, embora soturna. Seu estilo é inimitável. Que se inicie a lúgubre história!

A leitura prossegue, mesmo entre os comentários dos convivas. Vale frisar de imediato que o conto padece da falta de indicação de espaço e de tempo. Pura ficção. A história é até singela. O amigo de Kafka principia a ler. “Esta é uma época em que os circos costumam se instalar nas bordas das cidades”. Apresenta-se, na entrada, um recinto que é um vestíbulo. Ali se aloja um jejuador: não come nada e nem bebe uma gota sequer há 40 dias. Faz questão de que o coloquem na jaula em que vive bem na entrada do circo. Mais tarde, vai preferir ficar perto das jaulas dos outros animais. O faquir (sem cama de pregos) está deitado sobre uma camada de palha, que não trocam há muito. Sua sinistra figura atrai sempre bom público.

As pessoas, para vê-lo, usam tochas. O ambiente é como um desfile de pesadelos: tenebroso. Ninguém deplora seu estado decadente e animalesco. Antigamente, esse espetáculo deprimente causava sensação. Até uma comissão de adultos se encarrega de vigiar o quase cadáver por 24 horas. Além de não comer, também nada bebe. Uma placa presa à jaula indica os dias de jejum. Mas se, no passado, esses artistas da fome tinham fama e atraíam público – principalmente crianças –, agora os tempos são outros.

Menos pessoas querem ver o artista da fome. Ele parece descarnado, um esqueleto. Sua jaula foi sendo colocada cada vez mais em ambientes sombrios, fora do circo, porque já não há muito interesse por tão estranho ofício. Ele não fala, apenas se esforça para ejetar uns fonemas vacilantes. Parece satisfeito, porque nada pede. Algumas pessoas, daquelas que primam por tentar saciar a sua curiosidade, perguntam-lhe por que nunca quis sair dessa situação para lá de lamentável e tétrica.

Kafka propõe uma discussão que está pelo ar. Que tal? Não seria mais aconselhável depositar o jejuador em ambiente mais limpo? Ou onde houvesse mais público? Tarde! O “pai” daquele caixão de ossos sabe muito bem que o circo, o jejuador e o público não se empolgam. Essa gente preza buscar, aos trancos e barrancos, lugares assustadores. As pessoas, ao passarem pela jaula, além de notar a presença ossuda, também o tentam, dando-lhe guloseimas, que vomita. A situação é absurda: “Deixem o homem partir em paz!” “Não quero!” “Só sei jejuar!” “Meus dias de glória chegaram ao fim.”

Umberto Eco resolve convidar os colegas a conhecer o cemitério de Praga. Como o leitor deve saber, os cemitérios são os cronistas do passado: com suas placas e dizeres saudosistas, estão sempre a contar a mesma história, verdades à margem das lendas. Mas o espetáculo do jejuador ainda não terminou. Durante uma operação de limpeza das jaulas, perguntaram ao artista por que faz aquilo. E, perante dezenas de pessoas, ele diz algo inconcebível: “É que nunca me deram uma comida que me agradasse”. Agora, a jaula já está no meio dos outros animais.

Antes de descer o pano, chamo a atenção do leitor para o absurdo do que ouviu. García Márquez afirma que é devedor do faquir; Milos Forman queria lhe dar seu Oscar pelo filme Amadeus; Kundera fala, convicto, que lhe deve o livro mais vendido, A insustentável leveza do ser; Alexander Dubcek acena do futuro (de 1968, da Primavera de Praga, em que faltaram as flores, mas sobraram cactáceas e tanques soviéticos) e empunha um feixe de feno para o jejuador; Eco, imortal autor do best-seller mundial O nome da rosa – sobre o poder da escrita e do conhecimento, além de passar a limpo os movimentos heréticos de albigenses, franciscanos e cátaros –, vem do cemitério e diz: “não consegui ver o Kafka”.

Leitor, quando for à República Tcheca, não se esqueça de que é preciso ver a horrenda estátua dedicada ao grande autor de A Metamorfose. Ela está encimada por uma figura humana encarrapitada nos ombros de um homem acéfalo. Ninguém pergunta mais nada ao jejuador. E, sem mais nem menos, limpam a jaula, varrendo o artista junto. Absurdo dos absurdos. Não havia distinção entre a palha suja e o esqueleto do artista da fome.

Os nossos convidados rumam para a estação ferroviária do lendário Expresso do Oriente e somem da vista. Pergunta um jovem: o que acontece com o nosso querido artista da fome? Tudo muito higiênico. Na jaula, agora vazia e limpa, colocam uma jovem pantera. É infinitamente diverso o tratamento que dispensam à fera. Dão-lhe tudo o que quer: carne todo dia. Torna-se tão equilibrado o tratamento dado ao felino predador que tudo isso é feito com prazer e boa vontade pelos tratadores.

Ouçamos o que o autor tem a dizer para encerrar a tragédia: “e a alegria de viver brotava de sua garganta com tamanha intensidade que, para os espectadores, não era fácil suportá-la [a pantera]. Mas eles se dominavam, apinhavam-se em torno da jaula e não queriam de modo algum sair dali”.

Maravilhosas pontes, que cruzais o plácido Rio Moldávia, que fizestes dos passos de Kafka? Esses sons ressoarão até o fim dos tempos. As palavras de Franz Kafka lembram orações. Rezemos com o extraordinário judeu tcheco. Shalom!

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