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Quando certa manhã, ao acordar de sonhos intranquilos, você se deu conta de que havia se transformado em algo que não era anteriormente. Aconteceu com você? Também passei por isso. Em uma quinta-feira, ao despertar, percebi que, mais do que filho, eu era pai. E isso com todas as implicações possíveis.

Escrever este texto para a Gazeta faz parte de minhas obrigações paternas. Tem, evidentemente, relação com a vaidade: o mundo das letras é o território dos pavões. Mas sobrevivo da palavra escrita. Não estou aqui para fazer graça, apesar de que seria sensacional ganhar dinheiro praticando humor. Também não vou querer dar uma de Rubem Braga, Paulo Mendes Campos ou Fernando Sabino. Em 2014, até a crônica mudou e seria anacronismo imitar aqueles escritores.

Voltando ao assunto do primeiro parágrafo, quem mudou fui eu. Sou pai e o meu filho Vitor – 5 anos, 10 meses e 20 dias – depende de mim. Isso diz respeito a dinheiro e, mais do que apenas ao crédito para gastar e pagar contas, envolve o que para quase todos é o mais valioso: tempo.

Chego em casa após a jornada de trabalho com alguma energia. Então, o Vitor volta da escola e, em geral, diz: "Pai, você brinca comigo?" Batemos uma bolinha no corredor, vôlei no quarto e futebol de botão na sala. Se tenho escutado música? Sim. Estou atualizado com as trilhas sonoras de desenhos do Boomerang e do Cartoon Network. Há outras atividades, incluindo as tarefas da escola e ficar ao lado enquanto ele tenta passar de fase em algum jogo no computador.

Às 22 horas, o Vitor começa a bocejar. É preciso convencê-lo a escovar os dentes. Enquanto leio O saci, ele adormece – meia página do livro do Monteiro Lobato é suficiente para o menino dormir.

Aquele resto de energia, que eu havia economizado, já era. Vou dormir? E os e-mails que não respondi? Preciso ler, no momento, oito livros. Tem a louça me esperando, o jornal de hoje, ainda nem olhei a manchete, e quero reescrever este texto antes de enviar para o editor.

Levanto, vou ao banheiro, lavo o rosto e lembro do poema O teu corpo, do Ferreira Gullar: "É um ser estranho / que tem teu rosto [...] / E até já tens medo / de olhar no espelho".

É isso aí. Desde que acordei pai, e você que tem filhos também sabe: há um desejo de romper o vínculo e sumir, é inegável – qual pai não quis voltar a ser apenas filho? Mas há uma misteriosa satisfação, um "estar" que não se explica, de renunciar ao próprio tempo e a toda vontade para o filho poder seguir.

Marcio Renato dos Santos é jornalista e escritor

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