Não choraria. As mãos apoiadas na bancada da pia, tensionadas. A presidente tinha o olhar perdido na água jorrando pela torneira aberta, lembrando do pai enchendo a banheira de casa. As mangas arregaçadas das camisas sóbrias, as veias saltadas nos braços, o suor no pescoço, cigarro pendente na boca. Não tinha dúvida de que o búlgaro de 1,95 metro, que fora filiado ao Partido Comunista, orgulharia-se de tudo que ela fizera. Morrera em 62, antes de ela começar sua formação marxista, mas tudo estava nela desde antes, por causa dele. O grande leitor, que nos dias de calor esquecia do mundo dentro da banheira, sentindo o vento fresco no rosto, vindo pelo janelão aberto, copo de uísque ao lado, incentivava os filhos a ler. Livros escolhidos a dedo.

CARREGANDO :)

“Sra. Presidenta, a votação vai começar”, alguém lhe chamava. “Um minuto”, a voz saiu frágil. Olhou-se no espelho. “Nada mudou”, pensou, desolada. É como quando estava na Organização Revolucionária Marxista Política Operária (Polop), em 65. O golpe militar ainda fresco e o grupo se dividindo entre os que queriam derrubar a ditadura reivindicando uma Assembleia Constituinte e os que pugnavam pela luta armada. Ela escolheu lutar, sempre escolheu lutar, por que agora capitular? As mãos crispadas, a indignação quase saltando pelas sobrancelhas furiosas; era tarde demais. Torneira fechada, um último olhar ao espelho com as luzes apagadas.

Ela escolheu lutar, sempre escolheu lutar, por que agora capitular?

Publicidade
Veja também
  • Escola Sem Partido (29 de agosto de 2016)
  • Espírito esportivo (22 de agosto de 2016)

Somente os dois, mais ninguém na sala. “Vai dar tudo certo, querida.” Ela confiava nele, sempre confiou, mas nunca o vira tão derrotado quanto agora. “A Kátia fez uma fala soberba, e ainda tem o Renan... Fique tranquila.” O grande timoneiro falava para ninguém. Ela mirava as paredes como quem não pertencia mais àquele lugar, tudo tornara-se estrangeiro, como o pai. Engoliu o choro. Na tevê, Renan cumpria o combinado, pedia misericórdia. Nunca se sentiu tão humilhada. Por que dera ouvidos a Lula? Como não dar? E seu advogado a convencera com tantos argumentos favoráveis, onde estão?

O resultado, enfim. Deu certo, fora poupada, perdera apenas o mandato. Nenhum deles se levantou, nem falou nada. Os asseclas não ousavam abrir a porta, nem sequer bater. Era possível escutar choros. “E agora?”, perguntou, mais para si. “Seguimos o combinado, o discurso está pronto. Seja firme.” Ele quem abriu a porta, desaparecendo com rapidez. Alguns abraços, palavras vazias, de conforto. Veio a maquiadora, fazendo desaparecer mais uma vez as olheiras. Estava pronta.

Lia o discurso, sem conseguir esconder o cansaço. “Sei que todos vamos lutar. Haverá contra eles a mais firme, incansável e enérgica oposição que um governo golpista pode sofrer.” O olhar cintilou de repulsa, fazendo-a sair do texto: “Repito, haverá contra eles...”, perdeu o fio do raciocínio, inexistente, puxou o ar, e continuou: “Haverá contra eles a mais determinada oposição que um governo golpista pode sofrer”.

Não conseguia dormir. Abriu o blog do Gerson Camarotti, não acreditando no que lia: “Segundo relatos, Dilma manifestou o seu desejo para a bancada do PT no Senado por intermédio do advogado e ex-ministro José Eduardo Cardozo. No primeiro momento, a bancada ficou dividida. A avaliação é que isso poderia representar um aval da própria Dilma para todo o processo de impeachment. (...) ‘Não foi uma boa solução, pois tira parte do nosso argumento de que houve um golpe. Isso legitima o processo’, argumentou um senador petista. ‘Mas, se a Dilma pediu, não tinha como a bancada ficar contra.’”

Publicidade

“Que filhos da p...”. Então, chorou.