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O Renato Russo dizia que às vezes usava palavras repetidas porque todas já foram ditas. Talvez ele andasse distraído, impaciente e indeciso. Existem palavras raramente utilizadas. Há semanas estou cozinhando em panela de barreado a situação da Venezuela e não conseguia encontrar nem criar palavra para definir a minha impressão sobre a perseguição, atemorização, prisão de jornalistas e agentes políticos insubmissos ao governo.

Quando houve o homicídio de Nemtsov, líder da oposição na Rússia, que caminhava na calçada ao lado do Kremlin, me lembrei dos vários mortos riscados na coronha de Putin e pensei, quase sem querer, que nos Estados Unidos os membros do governo são baleados. Na Venezuela, Rússia e similares, alvejam-se os da oposição. Porém ainda me faltava a palavra para dar nome a esse objeto jurídico não identificado. Claro, ninguém mais fala de peito cheio que está dirigindo uma ditadura do proletariado como fase transitória para o éden profetizado por Marx, onde só haverá cooperação e todos farão de tudo, sem divisão social do trabalho.

Faz parte do embuste político – estelionato, na linguagem do Direito Penal – não chamar as coisas pelo que elas efetivamente são

Maduro, Putin, Cristina Kirchner, Rafael Correa, Evo Morales, Kim Jong-un e outros menos salientes mundo afora se apresentam como democratas da estirpe de Konrad Adenauer ou Nelson Mandela e querem igual lugar na história. Merecem?

Devo admitir que alguém se apresenta como inimigo da democracia: Abu Bakr Al-Baghdadi, o califa do Estado Islâmico que se empenha em construir um túnel para o passado em regiões da Síria e do Iraque. Na execução dessa obra, abre milhares de tumbas novas e destrói as antiquíssimas. Exceção explicável pelo substrato ideológico sobre o qual apoia sua ação política.

Faz parte do embuste político – estelionato, na linguagem do Direito Penal – não chamar as coisas pelo que elas efetivamente são. O eufemismo é parceiro da violência, tanto que a bonitona Ronda Rousey “finalizou” a adversária em 15 segundos, quando na verdade quase a matou com golpes demolidores em luta transmitida pela tevê.

Perseguindo a palavra perfeita, algo menos ambicioso do que a busca pela língua perfeita encetada por Umberto Eco, lembrei-me de objeções que ocorrem quando se diz que Cuba, Venezuela, Rússia são ditaduras: há eleições, parlamento aberto. Quem objeta via de regra ataca dizendo que o autor do adjetivo “ditadura” é reacionário, capitalista, direitoso etc. Crítica ad hominem, não à ideia.

Não fique nervoso. Ditadura, em sentido estrito, há nas monarquias absolutas da Arábia Saudita, Coreia do Norte e afins. Então, qual a palavra adequada para as situações nebulosas, nas quais inexiste separação de poderes, a corrupção é pandêmica, o clientelismo é institucionalizado, há ineficiência dos serviços públicos, concentração de riqueza, pobreza abjeta? Anocracia é a palavra.

Você está falando grego! Sim, para exprimir conceitos complexos, imperioso usar palavras incomuns. Entre a autocracia (ditadura) e a democracia, cinco dezenas de tons gris exibem identidade própria. Tudo bem, a Venezuela não é ditadura; o seu governo é anocrático.

Estamos apalavrados, como diria Guimarães Rosa.

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