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O clássico cogito ergo sum aplicado à vida moderna pode ser parodiado e se tornar título de texto ou, para expor o sentimento de modo mais veraz, se pode dizer: consumo, logo me irrito. Come­­cei a escrever o texto depois da ligação para a operadora de cartão de crédito ter "caído"; irritado, ante os "procedimentos da em­­presa" que me compeliam a telefonar para um lugar no fim do mundo para pedir que o comerciante cancelasse débito duplicado, alterei a voz sem ativar o sistema límbico, isto é, mantendo o córtex no comando e a linguagem racional, não dando vazão à de calão animal. Os mi­­nutos vão passando, o corpo esfriando, e a sensação de impotência, diante de alguém que é só voz ao telefone, é esmagadora. Quando fazia compras na Casa Arigatô em Assis Chateaubriand as dificuldades eram tratadas face a face com o proprietário. Não havia a possibilidade de dizer "chame o gerente": era ele que estava do outro lado do balcão. A caderneta, os itens a granel, o cheiro forte do peixe seco na barrica, as ferragens, panelas, enxadas, são lembranças vivas da pessoalidade do comércio de secos & molhados. O tempo doura a me­­mória, é verdade. Se todas as amarguras ficassem vivas, se morreria de acidez estomacal.

Os centros de atendimento telefônico, denominados "call centers" por macaquice cultural, suprassumo da miniaturização emocional do consumidor, têm dose elefantina de gerúndios decorrente da tradução literal das falas do inglês que, além de machucar o ouvido gramatical lusitano, é maneira de não assumir compromissos diretos, com orações afirmativas ou negativas. O indefectível "vou estar providenciando a solução" é rebolation e pode ser traduzido por: vou te embromar até você se cansar. A internet produziu distanciamento físico maior ainda entre as partes na relação de consumo, até porque não se fala nem com máquinas, apenas se fazem cliques em campos na tela. Apesar disso, as transações pela internet causam menos mal ao fígado que os centros de atendimento. Certamente, a intensa competição para a venda de produtos da mesma natureza, típicos do comércio eletrônico, faz da confiança a condição essencial para o mercador remoto, impessoal. Os fenícios modernos navegam na internet.

A narrativa dos desconfortos individuais nas relações de consumo produz espetáculo de lamúrias; relevante é a identificação do poder subjacente ao consumo para tecer análise que não seja apenas fieira de desesperos. À primeira evidência, existe assimetria informacional entre consumidor e fornecedor; o consumidor sempre sabe menos que o fornecedor sobre as qualidades e defeitos do bem ou serviço fornecido. O vendedor de cachorro-quente não sabe como são feitas as vinas, mas se presume que alguém na cadeia de fornecedores saiba. Essa presunção se destina a proteger a parte fraca, hipossuficiente, o consumidor, que decididamente não tem, em condições normais, meios de saber como foram feitas as vinas que ingere sofregamente.

Os fornecedores sem face, contactáveis apenas por telefone, geralmente são membros de duopólios ou, na melhor das hipóteses, de oligopólios. Assim, um fre­­guês a mais ou a menos é irrelevante para o sucesso do negócio. O intenso desequilíbrio de poder entre fornecedor e consumidor nessas situações é insuperável pelo raciocínio de mercado; o deixar fazer, deixar passar, apenas torna mais aguda a fragilidade de quem precisa dos bens ou serviços. Nesse ponto, a atividade do Estado, entidade mais forte que as partes da relação de consumo, é imprescindível para tornar menos desigual o relacionamento.

O poder político, hegemonizado pelo Estado, é o único controlador dos detentores de poder econômico sobre os quais não incide o controle de mercado re­­sultante da competição real, efetiva, não simbólica, retórica. Se há guerra de gigantes, os anões estão seguros. Quando os titãs se aliançam, Liliput sofre.

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