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Esticado e repuxado, com cara de que foi usado como cobaia de cirurgia plástica experimental, Muamar Kadafi deu o ar da sua desgraça na tevê, sob guarda-chuva modernoso, para dizer que não havia fugido para o colo de Hugo Chávez. Infelizmente estava falando a verdade e, na sua obstinação pela posição de chefe tirânico da Líbia, no dia seguinte estava outra vez no vídeo para liberar seus cães de guerra contra a população que está nas ruas pedindo o fim da ditadura mais longeva da África. O estilo babalorixá que faz propaganda em poste é hilariante; a violência da sua postura ao longo de quatro décadas é abjeta. A autotitulação como líder fraternal e guia da revolução é despudorado cinismo diante da incitação à trucidação dos opositores.

Em 1980, num evento da União Nacional dos Estudantes no Rio de Janeiro, conheci um representante do Kadafi que veio discorrer sobre a doutrina do Livro Verde. A novidade, o ar clandestino da presença do sujeito, faziam do petit comité momento atrativo e dei atenção àquela prosa. Escutei, não entendi nada e voltei a Curitiba com exemplares do tal livro; na verdade opúsculo mal impresso, quase coisa de mimeógrafo. Na viagem perturbei o passageiro do lado porque fiquei com a luz acesa para ler. Não sei se o conteúdo ou o balanço do ônibus: enauseado, meio tonto, fechei a capa verde. O volume foi para a estante e hoje não sei que fim levou.

O desinteresse inicial pelas ideias do Kadafi me livrou de perder tempo tentando decifrar as bizarrices teóricas e a megalomania psicótica. Ainda assim, aquele contato me fez manter a Líbia como um dos temas do pensamento e, perto do Natal de 1988, vi as imagens do Boeing 747 da PanAm despedaçado sobre casinhas do povoado de Lockerbie, Escócia; as investigações demonstraram que dois líbios, sob ordens direta de Kadafi, puseram a bordo um aparelho de som recheado com explosivo plástico. Entregues à Justiça do Reino Unido depois de mea culpa de Kadafi, um deles foi condenado à prisão perpétua e, sem que se consiga entender a razão, foi libertado em 2009 porque estava prestes a morrer de câncer. Óbvio, está vivinho na Líbia. Não bastante, o massacre na Olimpíada de Munique contou com apoio estratégico do tirano e o "Chacal", terrorista que tentava legitimar seus homicídios como depuração ideológica, era habitué do Palácio do governo líbio.

O retorno do tirano plastificado ao palco me trouxe à memória a excitação de alguns colegas de militância política diante da possibilidade de viajar à Líbia para estudar a "verdadeira revolução da Terceira Teoria Uni­­­­­versal". Não sei se foram. De mi­­nha parte, preferi acalentar o sonho de viajar à Grécia, Itália, para conhecer os monumentos que simbolizam a formação da cultura que deu ensejo ao surgimento da democracia sem adjetivos e dissimulações semânticas. Conhecer ditador em outro país? Tínhamos os domésticos a enfrentar!

O noticiário sobre a Líbia traz admoestação de Mahmoud Ahmadinejad a Kadafi, dizendo que ele usa violência excessiva contra o seu próprio povo. O presidente do Irã chegou a indagar como pode um líder metralhar seu próprio povo e afirmar que vai matar qualquer pessoa que disser qualquer coisa. O sujo falando do mal lavado. Ainda assim, revela o grau de barbárie do "Líder Fraterno" que atraía o esquerdismo pueril dado a acreditar que a única parteira da história é a violência.

Quarenta e dois anos no poder e os líbios permanecem na miséria, enquanto a família real frui as delícias da riqueza como se o Estado fosse sua fazenda. A minha crítica na juventude me livrou do dever da autocrítica na senectude.

Kadafi já vai tarde. Contudo, o mundo é mundo e seu avatar histriônico permanecerá com festas bunga-bunga em Roma. Imoral, mas dos males, o menor.

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