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As lágrimas do ursinho Misha no final das Olimpíadas de Moscou em 1980 emocionaram o mundo. O urso selvagem, símbolo da Rússia, e por extensão da União Soviética, foi redesenhado para se tornar mascote olímpico e alcançou imenso sucesso, com a ternura de um animal de pelúcia nos braços de uma criança. Algum tempo depois Misha estava esquecido, a bandeira da foice e do martelo foi para o museu e a flâmula tricolor da Rússia voltou ao topo dos mastros. A União se dissolveu e os povos do Báltico, Europa Central e Cáucaso recuperaram a soberania ou, em alguns casos, a constituíram. O urso hibernou e os exércitos que o tornavam temido afundaram junto com o submarino Kursk, que em 2000 foi a pique por falta de manutenção. A Rússia saiu das páginas políticas e passou para as policiais (máfias), econômicas (petróleo, gás), esportes e beldades (Ana Kourkinova, Maria Sharapova).

As imagens da Primavera de Praga em 1968, quando a República Tcheco-eslovaca, satélite da União Soviética, pretendeu distanciar-se da doutrina marxista-leninista e foi dissuadida pelos ursos de ferro (tanques) enviados pelo Kremlin, se apagaram no tempo e pareciam reminiscências de uma época definitivamente morta. Quarenta anos depois, em agosto de 2008, a blitzkrieg dos blindados russos rolando sobre as estradas da Geórgia parecia irreal, como se fosse reprise de cenas antigas. Contudo, eram atuais e causaram um choque ao mostrar que o urso está acordado, enfurecido e fortíssimo.

Para analisar essa ressurreição é importante dizer que as quatro décadas separam situações semelhantes, não iguais. Em Praga a ampla resistência pacífica desnorteou os soldados soviéticos, embora não tenha impedido que retomassem o controle e a cortina de ferro voltasse a se fechar. A leveza da iniciativa democrática tcheca foi esmagada pelo insustentável peso da ditadura soviética; fato simples: o mal derrotou o bem. Na Geórgia os russos contam com o apoio dos ossetos, parcela da população local, e a linha divisória entre bandidos e heróis não é tão nítida.

Quando a União Soviética desmoronou, os países que haviam sido compulsoriamente postos sob seu controle sentiram o prazer da liberdade e comemoraram o fim do jugo czarista-comunista. Na verdade não foi a secessão de uma federação, houve a dissolução de um império. Porém para os russos a liberdade econômica teve um preço político muito alto: a humilhação de se tornar potência de segunda classe, membro do grupo conhecido como BRIC (Brasil, Rússia, Índia, China). Essa diferença psíquica entre os russos e os outros povos que faziam parte da União Soviética não deve ser menosprezada; a amargura gerou o ímpeto de voltar à ribalta política com todo o esplendor e afirmação. Esse é um dos móbeis da célere resposta russa às iniciativas do governo de Geórgia de reassumir o controle efetivo, não apenas formal, do pedaço do seu território onde vive a população osseta, além de outra área denominada Abkazia. A alegação da Rússia para legitimar a invasão da Geórgia foi a de que estava protegendo cidadãos russos. O argumento é veraz, mas insuficiente para justificar a ação militar e política.

O fim da hibernação do urso traz novidades para as relações internacionais e confirma o descenso da breve hegemonia norte-americana; China, União Européia e Rússia não hesitarão em delimitar, ainda que pelas armas, suas áreas de influência.

No mundo policêntrico as relações políticas se tornam mais complexas e o comércio diminui porque se incrementam os custos de transação diante da fragilidade das instituições internacionais. Decididamente, o mundo plano imaginado nos anos 90 está se revelando extremamente acidentado e a guerra na Geórgia é uma pequena parte desse novo enredo.

Friedmann Wendpap é juiz federal e professor de Direito da UTP.

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