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Romário disse que ele, com a boca fechada, é um poeta. Os argentinos o reconhecem como atleta extraordinário, mas inferior a Dieguito, o pançudo. Ele, falando dele próprio, diz que Pelé é o Atleta do Século 20 e que igual não haverá porque sua mãe fechou a fábrica. Esse ho­­mem raro encarna o Brasil no mundo. Ronaldos, Romário, Zi­­co, Sócrates, Rivelino, Kaká, Lú­­cio, Leonardo, Grafite, Taffarel, compõem a galeria de heróis que tornam o Brasil presente na cultura de bilhões de pessoas. Po­­rém sobre todos eles há um vovô, com aparência e comportamento de titio, que completou 70 anos, reinando como Zeus no Olimpo dos esportes. Pelé tem 70 anos? Meu Deus, parece que foi ontem que a Jules Rimet veio definitivamente para cá! Diga-se, troféu de trajetória es­­tranha, furtado duas vezes: uma na Inglaterra e outra no Brasil, onde a réplica ficava no cofre e a original à mão do pouco respeitável público.

Aírton Senna tinha o mesmo charme, carisma, mas a vida breve e a distância do automobilismo do cotidiano das pessoas impediram que compartilhasse com Pelé o cimo reservado às pessoas que são mitos e, ao mesmo tempo, estão no horizonte de possibilidades dos comuns, dos ninguéns. É certo: Pelé, além do talento, do esforço, da inteligência superior, teve sorte. Senna, azar. É da vida.

De perto ninguém é normal, diz Caetano. Pelé infirma essa máxima: visto de longe é divindade; de perto, é normal. De perto, é o Edson, filho do João e da Ce­­leste, nascido em Três Cora­­ções, criado em Bauru, pai de filhos dentro e fora dos casamentos; diga-se, tão pleno de humanidade que reconheceu espontaneamente alguns e se recusou, mesmo diante do exame genético, a agir como pai de outros. Namorado da ero-anômina Xu­­xa, catalisou a transformação da gauchinha em celebridade. Falou mal da vida dos outros; constrangido diante de respostas acachapantes como a de Ro­­mário, guardou o silêncio dos inteligentes. Cinquentão, casou-se com todas as formalidades e pompas; sessentão, soltou-se na solteirice como menino levado. É normal, mas incomum. Lon­­gevo, saudável, bem-sucedido, o homem que se fez lenda transitou pela política, música, cinema, publicidade, sem a derrocada física e emocional que atingiu alguns habitantes de altitudes mais baixas do pódio. O seu perímetro abdominal não se transformou em medida de barril de cerveja e nem se hospedou em Cuba para limpar o corpo im­­pregnado de toxinas.

Dizem que os simplórios fa­­lam de pessoas, os inteligentes, de fatos e os sábios, de ideias. Estou falando de uma pessoa que encantou a minha infância, cuja genialidade esbocei imitar e desisti diante da realidade. Sinto-me um simplório diante dos movimentos leves e precisos, da capacidade de visualizar a movimentação dos parceiros e dos oponentes, do domínio da esfera que parece adestrada nos seus pés, quando nos meus age como bicho esquivo, escapando para longe, em rota aleatória, ante o menor toque. Ser coxa-branca não praticante, ter ido ao estádio uma única vez na vida e tomado a decisão de nunca mais voltar, não colide com o prazer de observar cérebros brilhantes colorindo o dia, dando alegria, entretenimento, para afastar um pouco a rotina gris.Nas aulas de português a cidade natal de Pelé era sempre lembrada: o gentílico de quem nasceu em Três Corações é... tricordiano; até nas coisas da escola ele participou da formação da me­­mória de gerações de brasileiros que, confinados na miudeza política e econômica, se sentiam representados na brasilidade majestosa do homem que para brilhar, não se consumiu.

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