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As crianças no final da infância; mudança de apartamento para casa onde pudessem se expandir e surge o inevitável: cachorro. A ideia começa a tomar corpo, a resistência também. A armadilha das feiras de filhotes é evitada porque é impossível a qualquer humano sair desacompanhado depois de ouvir os latidos nas gaiolas, tocar o pelo sedoso e fitar o olhar hipnótico de um cãozinho. O assunto ganha a mesa do almoço, da janta e a tergiversação vai à irritação ranzinza. A racionalidade te torna antipático e até ela, a mulher que no começo te apoiava, fica do lado deles. O tema extrapola o núcleo familiar e, num sábado de sol, a irmã que mora no bairro passa em casa durante a caminhada tangendo (ou sendo tangida) por labradora jovem, de uns seis meses. Entram para beber água e só a irmã vai embora.

Situação imposta, resta velar pelos detalhes para que a convivência seja agradável e começa a correria para ração, vacina, cesto de vime. De repente aquele bicho de dez quilos pesa mais de 30 e os piás ficam imaginando adestrá-la para obedecer ordens dadas com o olhar. Sente, deite, levante, pule a bicicleta, ande de skate, pegue o jornal, cace o rato que está no buraco do jardim. Ela, babando em todo mundo, espalhando pelo na casa, aprende apenas o básico diante da diversidade de instrutores e das fantasias dos meninos. Senta meio torta, fica um segundo e já se levanta para alguma estripulia. Agradável memória dos momentos de companhia recíproca entre eles e ela.

Agora os filhos são adultos jovens, seguem o curso normal da vida e saem de casa. A labradora, velha senhora, entra cada vez mais em casa. Passa a temer trovões, rojões, frio. Qualquer coisa é motivo para deitar no tapete da sala e roncar ato contínuo ao cerramento dos olhos. Domingo, sete da matina, começa a latir pedindo para passear. Sossega uns minutos e recomeça a barulheira, apressando quem se habilita a sair com ela. Não dá para ler o jornal ou tomar café; a primeira tarefa é ir à rua erma e silenciosa andar devagar enquanto ela cheira cada árvore, poste, arbusto. A cacofonia canina incomoda os vizinhos enquanto ela caminha com o pelo eriçado defronte aos portões onde os cães ladram para marcar território.

Senil, não se incomoda com os outros cachorros, mas subitamente um gato desavisado cruza a rua. A artrite desaparece e dispara para interceptar o felino. A correria anima a manhã fria e ela, depois da fuga do gato, volta claudicando, esperando a bronca. O afago nas orelhas, pescoço, dorso, a faz recuperar a alegria no trajeto para casa.

O sol aquece a manhã. Hora de lavar roupa para aproveitar o domingo raro, sem chuva. Sob o varal, deleitando-se com o piso morno, ela está dormindo com as patas para cima, apoiada no muro. Estender a roupa depois ou acordá-la? A titubeação com a cesta de roupa lavada nos braços cria cena de profundo significado emocional. Vivenciou momentos intensos da vida familiar e só quer o sono tranquilo de quem sente a idade nas juntas, penso, enquanto fito o bichão deitado. Ela abre os olhos, me observa e volta a dormir enquanto estendo a roupa. Dois velhos se olhando como testemunhas do tempo, perplexos com a decrepitude.

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