• Carregando...
 | Gilberto Yamamoto
| Foto: Gilberto Yamamoto

O café fumegava gostoso no dia friozinho do outono; do pão torrado na frigideira escorria manteiga. As mãos deslizavam pelo jornal como guia dos olhos. Momento hipnótico paralisador de relógios. O turbilhão do dia eclodirá em instantes, mas leitura é calmaria profunda como olho de furacão. Súbito começa a ler a página de baixo para cima e depara com o obituário. Raramente detém a atenção ali, mas hoje alguma coisa segurou a visão e, incrédulo, lê seu nome, causa mortis, idade, profissão. Pensa que pode ser brincadeira de mau gosto e se lembra da piada do advogado que, ao saber da própria morte, diz que vai recorrer até o Supremo.

Atônito, permanece com o jornal aberto sobre a mesa e vê as notícias mudarem como tela de computador e, sob a mão direita, aparece mensagem paga da família, agradecendo a presença dos amigos na missa de sétimo dia. Deus, um delírio! Era ateu não praticante. De vez em quando murmurava um pai-nosso diante da majestade da catedral. Pinturas, naves, cânticos, aroma de incenso, mirra. Essas coisas mexiam com ele. Havia até acompanhado a eleição do papa sorridente. Agora estava ali, sem saber se estava lá ou aqui e vê que os parentes seguiram o ritual católico tintim por tintim.

O texto mudou outra vez e não há nada alusivo a seu passamento. As notícias são as de sempre. Belisca o dorso da mão esquerda e a pele cheia de manchas senis não reage de modo sanguíneo. Acha estranho que as unhas estejam compridas, mas as usa para quase lanhar a carne e sente dor. Ah, está tudo em ordem. É só alucinação matinal de quem lê demais e acaba sonhando acordado como se fosse personagem de literatura!

A patroa passa e vai direto à pia lavar louça, sem sequer olhar para ele. Está frio, o aquecedor d’água não funciona e ela pragueja alguma coisa inaudível. Antes que ela se movimente, ele vai para fora e dá uns tapas no aquecedor que repentinamente começa a funcionar. O vapor da água quente sobe da cuba. Como ela está linda! Vestido com desenho que reforça a silhueta de pilão. Meia calça negra com a linha da costura marcada atrás. Salto alto em sapatos com petit pois. Brigaram faz dias e ela se recusa a falar antes que ele peça desculpas. Vê o relógio e percebe que ela já pegou a chave do carro e está saindo sem se despedir. Não trocaram nenhum olhar, foi como se ele não estivesse ali, não existisse. Pela falta de tempo e a brabeza dela, melhor deixar para a noite.

A indiferença doeu, mas a se lastimar prefere engendrar as frases que usará à noite para dizer que tinha razão no mérito da briga, contudo, a bem da boa convivência, pede desculpas por alguma palavra mal posta. Sabe que ela vai aceitar porque o conhece bem e sabe que ele, mesmo estando errado, não entrega os pontos e a coisa acaba numa barganha: ela dá um pouquinho de razão a ele em troca do pedido de perdão. Décadas de casamento e as miudezas e grandezas da humanidade de cada um integram a rotina do outro.

Acaricia a cachorra que dorme sobre o tapete da cozinha. O animal sente o toque, abre os olhos e volta a dormir embalado pela carícia nas orelhas. Vai para o ponto do ônibus. Ninguém responde aos seus cumprimentos. Meu Deus, esses curitibanos! Parece que a gente não existe, é como se eu tivesse morrido! Pensa no obituário e fica na dúvida.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]