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Por uma dessas ironias da história, o melhor analista político do Brasil é colombiano. Seu nome é Ricardo Vélez-Rodríguez, ele vive em Londrina e acaba de lançar o livro A Grande Mentira – Lula e o Patrimonialismo Petista, pela Vide Editorial. A obra reúne oito ensaios escritos entre 2005 e 2015, que podem ser lidos separadamente, sem prejuízo do entendimento. Cada capítulo corresponde a um aspecto da organização partidária que há 13 anos chegou ao governo federal, aparelhou a maioria das instituições, destruiu a economia nacional e agora utiliza todos os recursos do desespero para se manter no poder, mesmo contra a vontade de 90% da população.

A Grande Mentira é um livro avassalador. Ao dissecar o chamado “ciclo lulopetista”, Vélez-Rodríguez encontra as origens da atual crise na contradição entre os dois documentos elaborados pelo PT na eleição presidencial de 2002: a Carta aos Brasileiros e a Carta de Olinda. A primeira, redigida com muita competência pelos marqueteiros da campanha de Lula, em especial Duda Mendonça, acenava para a classe média e o empresariado nacional ao garantir que o Partido dos Trabalhadores iria manter as bases da estabilidade econômica conquistada pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, fazer valer a Constituição Federal e respeitar os contratos. Essa carta foi amplamente divulgada pela mídia e utilizada na campanha eleitoral como uma espécie de roteiro do candidato “Lulinha paz e amor”.

Pouca gente sabe, no entanto, que a Carta aos Brasileiros não veio sozinha. No fim de 2002, a direção do PT, sob o comando de José Dirceu, elaborou a Carta de Olinda, que de maneira direta propôs a instauração de um sistema produtivo centrado no Estado-empresário, privilegiando industriais e empreendedores leais ao governo e fortalecendo os movimentos sociais e sindicatos vinculados à hegemonia petista. Tratava-se de colocar as empresas públicas e a máquina estatal a serviço de um projeto de poder.

Uma vez no poder, o PT passou a tratar a res publica como Cosa Nostra

As duas cartas de navegação – uma para efeitos de marketing, outra para efeitos de dominação – acabaram por gerar um clima de esquizofrenia política. Durante algum tempo, enquanto se garantiu um mínimo de controle fiscal sobre o governo, foi possível ainda equilibrar os programas em duplicidade. Mas, no segundo governo Lula e no primeiro governo Dilma, o sistema entrou em colapso. O resultado é o que vemos hoje: uma absoluta incompatibilidade entre os anseios da elite governante e a dura realidade da imensa maioria da população. “Na última década, um programa que parecia conduzir ao reforço do modelo social-democrata (posto em marcha por Fernando Henrique Cardoso) foi derrubado por outro, de índole declaradamente patrimonialista e alinhado com o que de mais atrasado há na política mundial contemporânea”, comenta Vélez-Rodríguez.

O autor observa que essa esquizofrenia política parece ser um mal comum aos políticos latino-americanos influenciados pelo marxismo. As consequências da dupla carta de navegação – tese e antítese – são resumidas por Vélez-Rodríguez no que ele chama de “os sete pecados capitais do lulopetismo”: 1. Reforço definitivo ao patrimonialismo na gestão do Estado; 2. Entropia administrativa; 3. Corrupção desenfreada; 4. Enfraquecimento das instâncias institucionais que exercem controle sobre os gastos públicos; 5. Supremacia progressiva do Poder Executivo sobre o Legislativo e o Judiciário; 6. Formulação de uma política externa contra os interesses do país e de acordo com os interesses ideológicos do Partido dos Trabalhadores; 7. Empobrecimento dos brasileiros, volta da inflação e aumento descontrolado da violência e dos crimes contra a vida.

Uma vez no poder, o PT passou a tratar a res publica como Cosa Nostra. Não é por acaso que as fases da Operação Lava Jato acabam sempre por revelar vinculações familiares. Diz o autor: “O PT encara o Estado como negócio particular de caráter familiar. Administra-o como família sindical, de modo semelhante a como os militares entendiam o país como uma grande família militar. Não é o Partido dos Trabalhadores que deve se acomodar à realidade brasileira. É o país que deve ser posto a serviço dos interesses do Partido”. O sistema patrimonialista – tão bem definido por Raymundo Faoro, ironicamente um dos fundadores do PT – considera a lei como pura formalidade a ser utilizada para o bem dos companheiros. O “estamento burocrático” de que falava Faoro passou a ser o próprio PT. Os que não concordam são imediatamente estigmatizados como “inimigos do povo” e sofrem tentativas de assassinato de reputação.

Foi essa visão totalitária de mundo que permitiu o surgimento dos esquemas do mensalão e do petrolão. De 2005 para cá, a drenagem do dinheiro público cresceu de maneira exponencial. Ricardo Vélez-Rodríguez menciona cálculos que apontam os desvios do petrolão como equivalentes a 33 mensalões.

A força das análises em A Grande Mentira não se baseia apenas nos amplos conhecimentos de Vélez-Rodríguez, um dos maiores expoentes do pensamento liberal latino-americano, formado na escola do célebre filósofo e historiador Antônio Paim. O autor, apesar de suas origens colombianas, domina com maestria a língua portuguesa e oferece ao leitor um estilo ao mesmo fluente e expressivo. Mas há também outra razão para a qualidade de suas análises: Vélez-Rodríguez conhece profundamente a mentalidade dos esquerdistas ora encastelados no poder federal. Nos anos 70, ele fez parte de um movimento armado de inspiração trotskista e chegou a recrutar militantes para a guerrilha na Colômbia. Graças ao estudo e à inspiração de Antônio Paim – ele próprio um ex-militante comunista –, Ricardo superou as ilusões do socialismo e hoje é um de seus intérpretes mais lúcidos. Uma lucidez que se torna quase profética no capítulo final do livro, cujo tema é a posição do governo petista diante do terrorismo islâmico. Segundo o autor, o Brasil “não pode se furtar a definir, de forma objetiva, os caminhos a serem trilhados pela sociedade, sob a orientação do Estado, em face da guerra contra o terrorismo”.

Mas como isso será possível? Ao longo dos últimos 13 anos, o PT recrudesceu a sua luta gramsciana contra as instituições que ainda podiam oferecer uma resistência ao projeto de poder hegemônico: atacou a família tradicional, a imprensa livre, a religião, a propriedade privada, a atividade empresarial, os valores do civismo, a ordem jurídica e a paz social. Numa sociedade fragilizada por esses conflitos, qual será a defesa dos cidadãos comuns contra o terrorismo? Um país enfraquecido em sua educação e coesão interna – como o Brasil atual – torna-se um alvo fácil para os facínoras radicais, principalmente quando os ocupantes do poder se mostram condescendentes e até simpáticos a eles.

É por esse e outros motivos que podemos considerar A Grande Mentira como um livro verdadeiramente profético. Afinal, como dizia Nelson Rodrigues, “só os profetas enxergam o óbvio”.

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