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Na minha infância, os galos cantavam todas as manhãs. Você estará enganado se imaginar que eu morava no campo, numa aldeia ou em algum tipo de fazenda. Na verdade, vivi meus primeiros 12 anos no centro de São Paulo. Mesmo naquele emaranhado urbano, alguém criava galos e eles nos acordavam.

Hoje os galos não cantam mais. Moro numa cidade do interior, mas o marido da galinha deve ter ido cantar em outra freguesia. Acontece que os hábitos adquiridos na meninice dificilmente concordam em nos deixar – e eu ainda ouço o cocoricó da ave madrugadora.

Existe o galo de dentro e existe o galo de fora; o primeiro insiste em cantar no meu sonho, indiferente à ausência do seu irmão que partiu como um filho pródigo sabe-se lá para que bandas.

Depois que o galo foi embora, havia um substituto para acordar-me todas as manhãs: o telefonema de meu pai. Era um despertador de precisão suíça. Meu pai tinha o dom de ligar na hora mais certa, mais adequada, mais necessária. Ele sempre descobria o que eu estava pensando ou sentindo, antes mesmo de mim.

Meu pai era um galo que sabia falar e ouvir; um galo que sabia viver. Todas as manhãs, quando o galo de fora não canta, eu sinto saudade daquele telefonema.

Afinal, o que procuramos na vida? Sabedoria? Paz? Afeto? Compaixão? Riqueza? Esperança? Prazer? Silêncio? Beleza? Reconhecimento? Graça? Talvez busquemos um pouco de tudo isso. Mas existe algo que inevitavelmente nos será indispensável como a água: uma coisa chamada consolação.

Sem consolação, seremos para sempre um filho sem pai, um dia sem galo, uma canção sem música. Antes de morrer, Sócrates pediu aos amigos que reservassem um galo para Asclépio. Esse galo é a consolação; se ele não cantar na hora certa, nossa vida terá sido inútil. Acho que C.S. Lewis pensava nisso quando escreveu, pouco antes de morrer: "Estamos aqui numa terra de sonhos, mas o canto do galo está chegando".

O galo canta hoje para aqueles que morrem assassinados na Venezuela, na Ucrânia e também no Brasil. Canta a sua canção sem música, pois é um órfão perdido no mundo, como Ismael vagando pelo deserto na Bíblia ou navegando pelos mares no Livro da Baleia.

Quando eu era menino, no centro de São Paulo, ainda não sabia, mas o canto do galo era o anúncio da consolação. Não se trata de uma consolação passageira e formal, nem de uma simples rua ou cemitério paulistano, mas de um presente que levaremos para a eternidade. O galo está cantando no sempre-agora. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.

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