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Com o talento de poeta e a natural inclinação para a lexicografia, o presidente da suprema corte, ministro Carlos Ayres Britto, é a pessoa habilitada para discorrer sobre um novo vocábulo introduzido há poucas semanas no vocabulário midiático e destinado a transformar-se em bordão nacional.

"Dosimetria" – a administração de doses –, oriunda da medicina, foi adotada nos tratados de Direito Penal para conferir-lhe uma marca científica. Transferida para o linguajar culto graças à enorme exposição do julgamento da Ação Penal 470, vulgo mensalão, no país das modas e manias corre o risco de ser adotada em conversas sobre culinária, relacionamento afetivo, administração de empresas, planejamento econômico, política e futebol. Dificilmente será adotada no Twitter por conta dos seus dez caracteres.

Mais conhecida, popular, incluída obrigatoriamente em qualquer bula de remédio, a palavra posologia (do grego posón, "quanto?") seria menos pernóstica. De qualquer maneira, as dificuldades para determinar a dosimetria penal devida ao réu Marcos Valério (que logo serão estendidas aos corréus), não pode ser vista como deficiência dos supremos magistrados. A demora tem algo de positivo: falta de prática.

Nossas instâncias judiciárias superiores não estão acostumadas a arrebanhar tal número de acusados. Julgamentos de infrações maiores e mais vistosas raramente são televisionados. Os ilícitos praticados há décadas pelo imortal Paulo Maluf, mesmo julgados em tribunais colegiados, ficam sempre a salvo do escrutínio público. A avaliação dos valores a serem devolvidos ao erário ou a dosimetria das penas são levadas ao conhecimento da sociedade transitadas e julgadas.

Esta noção de porção, parcela e medida é extremamente salutar numa sociedade desmedida, marcada pelos excessos e exorbitâncias. Marcada principalmente pelas complacências e relativizações. Nesta terra se pode tudo, uma irreprimível vocação para a tolerância não permitiu o florescimento de uma percepção dosimétrica.

Tome-se, por exemplo, a questão dos abusos de poder político em períodos eleitorais. Nesta primeira votação que preside, Dilma Rousseff procurou se desmarcar do desapreço pelas normas de equidistância demonstrado por seu antecessor, Lula da Silva. Deu a entender que não subiria em palanques, não jogaria a força do cargo para favorecer correligionários, seria a presidente de todos os brasileiros.

O desenrolar da campanha levou-a a flexibilizar a disposição inicial. Subiu em palanques no primeiro e segundo turnos, apoiou candidatos ostensivamente e nem sequer deu-se ao trabalho de fazê-lo nos horários em que tem liberdade para agir como pessoa física. Não é do seu feitio discreto e elegante, mas atropelou a dosimetria das formalidades e convenções.

O conta-gotas é um dosímetro tradicional que a velocidade e a massificação da sociedade moderna estão tornando obsoleto. O culto da dosimetria que emana de um dos cantos da Praça dos Três Poderes fará bem a todos. Inclusive àqueles que, julgando-se infalíveis, parecem tomados pela ira condenatória.

Alberto Dines é jornalista.

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