
“Onde não cabe interpretação, até as máquinas podem sentenciar.” Por mais que o então senador Roberto Requião tivesse incluído essa frase em seu relatório da Lei de Abuso de Autoridade para justificar uma subjetividade total que colocaria uma verdadeira mordaça em policiais, procuradores e juízes, há alguma base de verdade aí. A Justiça não funciona à base de máquinas, mas de seres humanos; e eles são chamados a decidir, em um trabalho que exige, sim, um certo grau de interpretação, já que a lei está longe de dar conta de absolutamente todas as realidades.
Do Judiciário se espera que julgue as demandas apresentadas com celeridade, justiça e bom senso, em profunda sintonia com a Constituição – tanto com sua letra quanto com seu espírito, o que exige profundo conhecimento também das ideias e princípios que nortearam o constituinte –, mas isso não é tudo. Como afirmamos, nem toda situação encontrará resposta cristalina no texto legal, ou terá similaridade com casos anteriores já julgados; onde há espaço para interpretação e para mais de uma solução compatível com a Constituição, impõe-se a necessidade de estabelecer critérios claros, um padrão que será seguido no futuro diante de casos semelhantes. Por isso, é essencial que os tribunais sejam garantidores de segurança jurídica, sem reversões e reviravoltas que façam valer a máxima segundo a qual “no Brasil, até o passado é incerto”.
As decisões relativas à Operação Lava Jato no Supremo mostram à perfeição como a desconstrução de atos juridicamente irretocáveis se transformou na prática usual da corte
Quando a Constituição, a lei, a jurisprudência, os princípios legais e a coisa julgada são ignorados, entra em ação o voluntarismo. Já não existe uma única Constituição, mas tantas Constituições quanto magistrados. Já não existe jurisprudência, mas apenas as convicções e as conveniências de cada julgador. E, no Brasil atual, poucas instituições têm representado esse caos judicial de forma tão intensa quanto aquela que deveria ser a principal guardiã da Carta Magna e da segurança jurídica, o Supremo Tribunal Federal.
Se reputamos como praticamente heroico um voto como o de Rosa Weber, que, sendo contrária à prisão após a condenação em segunda instância, se opôs à concessão de um habeas corpus que livraria Lula da cadeia em 2018, pois o entendimento vigente era o de que essa prisão estava respaldada pela jurisprudência do STF, é porque o que deveria ser normal tornou-se a exceção. E as decisões relativas à Operação Lava Jato no Supremo, embora estejam longe de ser as únicas que fazem do atual Supremo um promotor de insegurança jurídica, mostram à perfeição como a desconstrução de atos juridicamente irretocáveis se transformou na prática usual da corte.
Um caso emblemático é o da anulação de sentenças em processos envolvendo corréus delatores e delatados, sob a alegação de que estes últimos deveriam entregar as alegações finais depois daqueles, uma diferenciação que não existe no Código de Processo Penal, embora a lei também permita que um juiz alongue os prazos caso perceba que as alegações finais dos delatores trazem novidades das quais os delatados não tiveram como se defender antes. Sob o pretexto de resguardar a ampla defesa e o direito ao contraditório, o que é correto, os ministros fecharam os olhos para o fato de que, nos processos que lhes chegaram às mãos, não houve prejuízo concreto a nenhum réu delatado. Com isso, foram desfeitas condenações em que houve completo respeito tanto à legislação processual penal quanto aos direitos dos réus. Esta aberração não passou despercebida a alguns ministros, que ressaltaram a necessidade de se estabelecer uma modulação que balizasse a análise de casos semelhantes. Tal modulação, prometida desde setembro de 2019, jamais chegou a ser feita.
Assim, não chega a ser surpresa completa que, com uma canetada, Edson Fachin tenha decidido que a 13.ª Vara Federal de Curitiba não tem competência para julgar os processos do ex-presidente Lula, ainda que essa competência tenha sido questionada e reafirmada inúmeras vezes na segunda, na terceira e na última instância – o próprio Supremo. Nem que, para isso, tenha alegado que os processos não tinham relação com a Petrobras, apesar de denúncias e sentenças deixarem clara a relação entre os crimes cometidos e a pilhagem na estatal petrolífera. Por mais complexas que sejam as questões ligadas à competência para se julgar determinados casos, ainda mais uma investigação com tantas ramificações quanto a Lava Jato, fato é que havia um entendimento unânime a respeito do papel da 13.ª Vara, longamente construído com a participação do próprio Supremo, e que foi simplesmente descartado por uma mudança de caráter totalmente voluntarista. Além disso, não escapa a nenhum leitor atento da decisão de Fachin que as argumentações apresentadas podiam perfeitamente ser usadas na hipótese inversa – imagine o leitor que, por exemplo, a maior parte dos processos da Lava Jato estivesse sendo conduzida em Brasília, e um ministro decidisse anulá-los e remetê-los à 13.ª Vara: ele poderia fazê-lo copiando quase que na íntegra a decisão de Fachin, o que apenas evidencia ainda mais seu caráter subjetivo, sem amparo na realidade dos fatos.
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Por fim, há de se lembrar do escandaloso caso em que quatro ministros da Segunda Turma decidiram seguir adiante com o julgamento da suspeição de Sergio Moro, na última terça-feira. Pois aqui não se tratou de desafiar apenas a Constituição, a lei ou a jurisprudência, mas também a própria lógica. Afinal, se o processo do tríplex do Guarujá havia sido tornado nulo, mesmo que de forma ainda provisória, todos os recursos a ele relacionados teriam o mesmo destino, no que o jargão jurídico chama de “perda de objeto”. Ao criar um habeas corpus zumbificado, pois mantido vivo apesar de o processo principal ter sido eliminado, a Segunda Turma deixou de lado qualquer resquício de bom senso e respeito aos fatos para, como se depreendeu pela leitura do voto de Gilmar Mendes, insistir na perseguição aos protagonistas da Lava Jato.
A Lava Jato, como lembramos, é apenas o exemplo mais evidente, mas também em vários outros temas, como o papel do Estado, a liberdade econômica e assuntos morais, o Supremo vem exibindo uma desconsideração sistemática pela Constituição, pelas leis, pela jurisprudência e pelos fatos. Independentemente da intenção que move os ministros em seus votos e decisões, ainda que eles estejam sinceramente convictos do acerto de seus atos, o resultado desse padrão decisório é, ironicamente, o fim de qualquer outro padrão, pois já não há regras fixas a que todos devem se submeter, mas apenas a vontade dos ministros, isoladamente ou em colegiado. Tamanha inconstância, tamanha insegurança jurídica leva a um perigoso descrédito do Judiciário, e especialmente do Supremo. Se a instituição para a qual muitos brasileiros um dia olharam com esperança, como um porto seguro em meio ao lamaçal da corrupção do mensalão, já não desperta confiança, é porque seus membros – intencionalmente ou não, pouco importa – se deixaram levar por um voluntarismo que, no fim, é autodestrutivo.



