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Fachada da sede do Conselho Federal da OAB, em Brasília.| Foto: Reprodução OAB

Nenhum regimento interno de tribunal tem o poder de atenuar ou eliminar garantias fundamentais como o direito à ampla defesa. Que uma entidade de classe precise lembrar algo tão simples aos magistrados da cúpula do Poder Judiciário brasileiro é um sinal bastante preocupante do tamanho de nossos problemas institucionais, mas foi exatamente o que aconteceu na última quinta-feira. Em nota assinada pelo presidente do seu Conselho Federal, Beto Simonetti, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) manifestou “preocupação com a flexibilização ou supressão do direito constitucional ao contraditório e à ampla defesa pelo Supremo Tribunal Federal (STF)”.

O episódio que motivou a manifestação da OAB ocorreu durante uma sessão da Primeira Turma do STF. O ministro Alexandre de Moraes, presidente da turma, impediu que um defensor fizesse uma sustentação oral durante o julgamento presencial de um agravo regimental em habeas corpus. Segundo Moraes, a vedação está prevista no Regimento Interno do Supremo, que “tem força de lei específica prevalecendo sobre a norma geral”, nas palavras do ministro. Um vídeo mostra o momento em que Moraes interrompe o defensor quando ele pedia a palavra, e ainda se pode ouvir o ministro Luiz Fux afirmando estar de acordo com Moraes.

Que a OAB tenha finalmente despertado para compreender o tamanho da crise que vivemos hoje e corresponda à imagem de farol da democracia que os cidadãos um dia lhe atribuíram

No entanto, não era qualquer “norma geral” que estava sendo obliterada pela “lei específica”, mas a própria Constituição. Impedir que um advogado faça sustentação oral em defesa de seu cliente viola frontalmente o direito à ampla defesa previsto no inciso LV do artigo 5.º da Carta Magna. A OAB o ressalta perfeitamente ao afirmar, na nota, que “a sustentação oral está inserida no direito de defesa, que é uma garantia constitucional e, portanto, não se submete a regimentos internos, mesmo o do STF. Tais regimentos regulamentam o funcionamento dos tribunais e não podem corrigir ou suprimir direitos constitucionais regulamentados por leis federais. A negativa de proferimento de sustentações orais previstas em lei representa violação da lei processual e da Constituição”.

A nota da OAB está em linha com outras manifestações recentes da entidade, como os pedidos pelo fim do sigilo das imagens do entrevero envolvendo Alexandre de Moraes no aeroporto de Roma, e para que os julgamentos do 8 de janeiro sejam todos realizados em plenário físico, e não virtual, já que nesta modalidade não há nenhuma garantia de que os ministros efetivamente assistam aos vídeos em que os advogados fazem a defesa dos réus. No entanto, a corte já recusou ambas as solicitações, mostrando que está empenhada naquilo que a nota da OAB chama de “empoderamento dos tribunais para ignorarem as leis ou colocarem suas normas internas acima da legislação”.

É preciso questionar, aliás, se tal “empoderamento” poderia ter sido evitado se a postura atual da OAB tivesse sido adotada desde que o Supremo começou a dar os primeiros sinais de que pretendia ser “editor de uma nação inteira”, nas infelizes palavras de Dias Toffoli. Lamentavelmente, a OAB também se juntou ao sono coletivo que entorpeceu quase toda a sociedade civil organizada enquanto o Supremo atacava a liberdade de expressão de inúmeras formas a partir de 2019. Em parte, isso se deu graças às desavenças pessoais entre o então presidente da República, Jair Bolsonaro, e o então presidente do Conselho Federal da OAB, Felipe Santa Cruz – uma rixa até compreensível, dadas as afirmações de Bolsonaro sobre o pai de Santa Cruz, desaparecido durante a ditadura militar, mas que jamais poderia ter transbordado para a atuação institucional da OAB. Mesmo depois que Santa Cruz foi substituído por Simonetti, no início de 2022, o novo presidente começou dando declarações muito ruins ao endossar o abusivo inquérito das fake news.

Que a OAB tenha finalmente despertado para compreender o tamanho da crise que vivemos hoje. Em outros tempos, a Ordem conquistou grandeza moral ao enfrentar o arbítrio e defender com firmeza a democracia; hoje, os tanques e coturnos foram substituídos por canetas e togas, mas o arbítrio é bem parecido: liberdades são cassadas, pessoas são perseguidas e punidas sem terem cometido crime algum, a ampla defesa é ignorada, a censura se espalha. Ainda que a função primordial da OAB seja a defesa das prerrogativas dos advogados, os brasileiros já se acostumaram a ver a entidade como algo muito maior; é preciso que a Ordem corresponda à imagem de farol da democracia que os cidadãos um dia lhe atribuíram.

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