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O ministro do STF Alexandre de Moraes.
O ministro do STF Alexandre de Moraes.| Foto: Fellipe Sampaio/STF

Apesar das insistentes solicitações da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e de alguns pedidos de destaque que levaram para as sessões presenciais do Supremo Tribunal Federal o julgamento de alguns réus do 8 de janeiro, ainda há quem esteja tendo seu caso avaliado no asséptico ambiente do plenário virtual, onde os debates a que o país inteiro teria acesso por meio da televisão são substituídos por meros depósitos de votos em um sistema informatizado e defesas feitas em vídeos a que os ministros talvez nem assistam. Um caso escandaloso acaba de ter seu desfecho, com a condenação da faxineira Edinéia Paiva a 17 anos de prisão, pena sugerida pelo relator Alexandre de Moraes, cujo voto foi seguido pela maioria dos colegas.

Quando cidadãos de Americana (SP), insatisfeitos com a vitória de Lula, montaram um acampamento diante do quartel do Exército na cidade, Edinéia passou a frequentar o local todos os dias, após sair do trabalho. Foi a Brasília para participar de uma manifestação pacífica no fim de semana do 8 de janeiro; segundo seu relato, participou de uma missa diante do quartel-general do Exército na capital federal, e dali foi à Praça dos Três Poderes. Chegou quando o caos já estava em curso, e se escondeu sob a rampa do Planalto para se proteger das bombas de gás lançadas pelas forças de segurança para conter os invasores. Ali foi presa, ainda de acordo com seu relato – o voto afirma que ela teria sido detida dentro da sede do Executivo –, com um terço e uma Bíblia na mão. Passou sete meses no presídio feminino da Colmeia, sem motivo algum que justificasse seu encarceramento, ausência que cobrou de seus familiares um enorme preço emocional.

Afirmar que todos os que estavam na Praça dos Três Poderes tinham as mesmíssimas intenções, como faz Moraes, é uma ilação sem o menor fundamento na realidade e que é desmentida pelo próprio depoimento de policiais e militares que efetuaram as prisões

O voto de Alexandre de Moraes segue o mesmo roteiro já conhecido em outras condenações e votos em julgamentos ainda não encerrados. Dezenas de páginas copiadas dos votos anteriores; o abuso do conceito de “crime multitudinário” como muleta para se dispensar a individualização da conduta; referências abundantes a atos praticados e objetos apreendidos com outras pessoas, jamais com a ré; depoimentos genéricos que nunca citam Edinéia explicitamente. Os únicos elementos concretos que o relator tem em relação à ré são imagens e vídeos encontrados no seu celular, recebidos e armazenados por ela, e cujo teor, é verdade, remete à preparação para um possível conflito, além de induzir quem os recebe a acreditar que as Forças Armadas estariam prontas para um possível golpe. O único conteúdo citado no voto que foi efetivamente produzido por Edinéia é um vídeo no acampamento diante de Brasília, afirmando que “não para de chegar patriota”, que “irão entupir Brasília” e que “o Brasil é nosso”.

À repetição exaustiva que Alexandre de Moraes emprega em seus votos temos de responder com nossa própria insistência em uma verdade óbvia: não estamos presenciando justiça, mas justiçamento. Garantias essenciais que caracterizam o devido processo legal em um país democrático estão sendo sistematicamente ignoradas, do juiz natural – afinal, Edinéia não tem foro privilegiado – à necessidade de individualização da conduta, para que cada acusado pague pelo que efetivamente fez, e não pelo que outros fizeram. Afirmar que todos os que estavam na Praça dos Três Poderes tinham as mesmíssimas intenções, como faz o relator, é uma ilação sem o menor fundamento na realidade e que é desmentida pelo próprio depoimento de membros das forças de segurança que efetuaram as prisões. Ainda pior é o fato de essa tese eliminar totalmente a presunção de inocência – pois a mera presença na praça já se torna, então, elemento suficiente para alguém receber condenações em série – e o in dubio pro reo.

O acúmulo de absurdos nos julgamentos do 8 de janeiro está se tornando tão avassalador que, muito aos poucos, há ministros que começam a rejeitar essa padronização defendida por Moraes. Apenas quatro ministros (Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Luiz Fux) seguiram integralmente o relator; dois (Cristiano Zanin e Edson Fachin) concordaram com todas as condenações, mas pediram pena menor; André Mendonça condenou Edinéia apenas pelo crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, absolvendo-a de todos os demais (associação criminosa armada, golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado), enquanto Luís Roberto Barroso fez exatamente o inverso. Por fim, Nunes Marques votou pela absolvição nas cinco acusações, mas imputou a Edinéia um crime diverso, o de incitação, apoiando-se justamente nos conteúdos gravados no celular da ré, que, “somados ao fato de que ela chegou a ingressar no Palácio do Planalto, demonstraram, de forma suficiente, a incitação de animosidade entre as Forças Armadas e os poderes constitucionais” – uma descrição que nos parece bem mais condizente com a realidade.

Que havia verdadeiros golpistas entre os vândalos do 8 de janeiro nos parece indiscutível; e os conteúdos encontrados no celular de Edinéia mostram haver, ainda, outros que desejavam o golpe e induziram milhares de “inocentes úteis” a acreditar que ele era iminente e teria amparo legal no artigo 142 da Constituição – uma interpretação descabida, mas que encontrou terreno fértil na decepção de muitos brasileiros com a vitória de Lula. Estes, sim, precisam ser responsabilizados por crimes contra o Estado de Direito, assim como os vândalos precisam pagar pela depredação de patrimônio. Mas até agora nada disso ocorreu. Sem comprovação de que tenham realmente cometido os crimes de que são acusados, Ednéia, Jupira, Nilma, Aécio, Thiago, Matheus e muitos outros brasileiros estão apenas sendo exibidos como troféus por supostos defensores da democracia.

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