Vista do Congresso Nacional a partir do Palácio do Planalto.| Foto: Pedro França/Agência Senado
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O Tribunal de Contas da União (TCU) começou a investigar o que parte da imprensa chama de “orçamento secreto” ou “paralelo” – uma distribuição de recursos a parlamentares, especialmente do Centrão, feita de maneira informal e pouco transparente. Tais repasses ocorrem por meio das emendas de relator ao Orçamento da União, instrumento criado recentemente pelo Congresso Nacional, explicado em detalhes pela Gazeta do Povo em reportagem na quinta-feira e que trouxe de volta alguns dos piores vícios que marcavam a interação entre Executivo e Legislativo quanto à aplicação dos recursos orçamentários.

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A Constituição prevê o mecanismo das emendas parlamentares individuais, em que cada deputado ou senador tem à disposição um montante fixo e igual para todos, destinado para os gastos de escolha do parlamentar – tradicionalmente, o dinheiro é dirigido a obras ou instituições de cidades ou regiões onde tais parlamentares têm suas bases eleitorais. No entanto, por muitos anos o governo federal podia se recusar a realizar a despesa prevista, o que transformava a execução das emendas em instrumento de barganha política: o dinheiro era liberado à medida que o autor da emenda se comprometia em dar seu apoio ao governo de ocasião ou a alguma proposta específica de interesse do Planalto – um expediente que independia da orientação ideológica de quem estivesse negociando. Às emendas individuais foram acrescentadas, posteriormente, as emendas de bancada – propostas em conjunto por todos os parlamentares de certo estado – e de comissão, sugeridas pelas comissões técnicas da Câmara e do Senado.

Após o estabelecimento das emendas impositivas, os congressistas não tardaram a encontrar um outro meio de abocanhar uma fatia maior do orçamento, privilegiar certos grupos de parlamentares e restabelecer a barganha política

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Em 2015, o Congresso aprovou a primeira alteração constitucional que estabeleceu o chamado “orçamento impositivo”. A partir dali, o governo ficava obrigado a executar todas as emendas individuais, seja de sua base aliada, seja de oposicionistas. Em 2019, a mesma obrigação foi ampliada para as emendas de bancada. Terminava ali, portanto, a possibilidade de negociatas políticas usando as emendas como “argumento”. Os congressistas, no entanto, não tardaram a encontrar um outro meio de abocanhar uma fatia maior do orçamento, privilegiar certos grupos de parlamentares e restabelecer a barganha.

Em 2019, durante as discussões do Orçamento de 2020, foram criadas as “emendas de relator”, oficialmente de responsabilidade do parlamentar encarregado de relatar a peça orçamentária anual. A voracidade ficou escancarada desde o surgimento desse instrumento, quando o deputado Domingos Neto (PSD-CE) colocou nesta rubrica inacreditáveis R$ 30 bilhões – o dobro da soma das emendas individuais e de bancada – e ainda pretendia que as emendas de relator também tivessem caráter impositivo. No fim da queda de braço com o presidente Jair Bolsonaro, as emendas de relator foram reduzidas a R$ 20 bilhões, sem execução obrigatória. No Orçamento de 2021, foi a vez de o senador Márcio Bittar (MDB-AC) incluir R$ 26,5 bilhões em emendas de relator, contra R$ 17 bilhões em emendas individuais e de bancada; também desta vez o valor final foi reduzido, em uma disputa que ainda levou em conta o fato de a peça orçamentária simplesmente não fechar as contas, com a redução de recursos para gastos obrigatórios.

O “pulo do gato” das emendas de relator está no fato de que, obviamente, a “paternidade” das emendas é apenas nominal, pois não é o relator quem decide sozinho para onde vai tanto dinheiro: ele acaba aplicado de acordo com as indicações de parlamentares amigos, e alocado em ministérios e órgãos de governo controlados por apadrinhados desses políticos. E todo o processo ocorre sem formalidades – no máximo, por meio de ofícios encaminhados aos órgãos e ministérios beneficiados com as emendas de relator, mas há informações sobre pedidos registrados em planilhas simples elaboradas por assessores e até feitos pelo WhatsApp.

O levantamento do destino das emendas de relator deixa clara a forma como ela beneficia especialmente o Centrão e outros aliados do governo. Entre os principais órgãos contemplados está, com R$ 1,2 bilhão, a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), comandada por um indicado do deputado Elmar Nascimento (DEM-BA) e que tem superintendentes regionais apontados por políticos como o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Já o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), órgão do MEC, recebeu R$ 1,5 bilhão e tem à frente um indicado do senador Ciro Nogueira (PP-PI). O ex-presidente do Senado Davi Alcolumbre (DEM-AP) e a deputada licenciada Flavia Arruda (PL-DF), hoje ministra-chefe da Secretaria de Governo, também estão entre os que tiveram pedidos atendidos nas emendas de relator.

Já está suficientemente demonstrado que o instrumento das emendas de relator é uma aberração com inúmeros efeitos negativos, sem pontos positivos que os compensem

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Os vícios contidos em todo o procedimento das emendas de relator são evidentes. Na “menos pior” das hipóteses, ela já viola a isonomia garantida pelas regras das emendas individuais, que contemplam igualmente todos os parlamentares. Com as emendas de relator, cria-se uma casta de privilegiados que têm direito a fazer indicações em valores muito maiores que as previstas nas emendas individuais. Isso leva ao problema conexo, que é a ressurreição da barganha política envolvida na execução dessas emendas. E, na pior das hipóteses, ainda fica reaberta a porta para a corrupção – o TCU investiga, ainda, o uso das emendas de relator para a compra de tratores e equipamentos agrícolas superfaturados.

Ouvido pela Gazeta do Povo, Marcos Mendes, pesquisador do Insper e consultor legislativo do Senado licenciado, afirma que as emendas, por si mesmas e de que tipo forem, já são uma distorção das funções dos poderes, já que “o orçamento deveria ser proposto e executado pelo Poder Executivo”. Que parte das emendas tenha se tornado impositiva apenas reforça a incapacidade de Executivo e Legislativo se entenderem quanto aos investimentos e gastos que precisam ser feitos. Uma anomalia que é potencializada pelo fato de a maior parte do bolo dos impostos ser remetida a Brasília, em vez de permanecer nos estados e municípios. Independentemente do desfecho das investigações do TCU, já está suficientemente demonstrado que o instrumento das emendas de relator é uma aberração com inúmeros efeitos negativos, sem pontos positivos que os compensem, mas parece improvável que a parte do sistema político movida a dinheiro e troca de favores esteja disposta a abrir mão dele.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]