A péssima reação dos mercados ao anúncio de que o Renda Cidadã seria bancado com dinheiro do Fundeb e o represamento de parte dos recursos destinados ao pagamento de precatórios não serviu de aprendizado nem para o Congresso, nem para o presidente Jair Bolsonaro, o principal interessado em tirar do papel um substituto para o Bolsa Família. Executivo e Legislativo, de comum acordo, decidiram deixar para dezembro a discussão sobre como, afinal, o programa será bancado, prolongando a incerteza sobre o compromisso de Bolsonaro com o ajuste fiscal, até agora manifestado em transmissões e publicações nas mídias sociais, mas nem sempre confirmado nas decisões que toma.
A matemática é bastante simples: a regra do teto de gastos estipula um montante máximo para as despesas do governo em 2021, e o custo do Renda Cidadã, caso ele tenha o valor e a abrangência que Bolsonaro deseja, não cabe neste limite sem que haja um corte equivalente em despesas que já estão programadas no orçamento do ano que vem – é importante lembrar que isso independe de quaisquer receitas extraordinárias que o governo venha a ter, por exemplo com privatizações e concessões. No entanto, Bolsonaro vem resistindo a todas as opções que a equipe econômica vinha lhe apresentando para fazer caber o Renda Cidadã dentro do limite do teto, incluindo o fim de benefícios considerados ineficazes. Tamanha resistência levou à criação de mais uma jabuticaba envolvendo o Fundeb e os precatórios. No fim, tratava-se de criar nova despesa sem nenhum corte, o que o mercado absorveu muito mal, com uma disparada na curva de juros longos – que refletem a confiança na capacidade de o governo honrar seus compromissos no longo prazo.
2021 precisa marcar o reencontro do país com a responsabilidade na gestão do gasto público, pois haverá muito estrago a ser consertado
Com a suspensão das discussões, continua valendo a combinação que valeu a desconfiança dos investidores e reforça as suspeitas de que o teto de gastos acabará sendo desrespeitado em 2021. A emenda constitucional que estabeleceu o teto não proíbe o governo de furá-lo, mas impõe uma série de restrições caso isso ocorra, como proibição de concursos e contratações, por exemplo. Furar o teto às claras já representaria um péssimo sinal a respeito do futuro do ajuste fiscal; pior ainda seria tentar burlá-lo com subterfúgios, ou até mesmo alterar a regra por meio de uma nova emenda à Constituição para acomodar demandas como a gerada pelo Renda Cidadã.
Mesmo o argumento de que no momento não há discussão possível por causa do calendário eleitoral não se sustenta. Ainda que muitos parlamentares tenham aderido ao lamentável costume do “recesso branco”, deixando de lado sua atividade parlamentar para disputar prefeituras ou empenhar-se nas campanhas de seus apadrinhados, este tempo seria fundamental para que a equipe econômica e o senador Márcio Bittar (MDB-AC), relator tanto do Orçamento quanto da PEC Emergencial, acertassem os ponteiros quanto a uma proposta viável politicamente e sólida do ponto de vista fiscal. Assim, quando deputados e senadores voltassem ao trabalho, teriam em mãos, para iniciar as discussões, algo bem melhor que o remendo sugerido no fim de setembro. Esse entendimento até parecia estar sendo já costurado, mas cada adiamento deixa subentendido que não há consenso sobre uma alternativa de financiamento do Renda Cidadã. E, sem isso, há um risco considerável de que, com pouco tempo para debater, os congressistas acabem se contentando com outra solução improvisada que terá de ser aprovada a toque de caixa.
O Renda Cidadã é um grande teste para o compromisso de Jair Bolsonaro com o ajuste fiscal. Se 2020 está perdido por causa dos gastos necessários para mitigar os efeitos da pandemia do coronavírus, 2021 precisa marcar o reencontro do país com a responsabilidade na gestão do gasto público, pois haverá muito estrago a ser consertado. Sem que o investidor confie na capacidade brasileira de botar suas contas em ordem, não haverá recuperação possível – nem em V, nem em U, nem em qualquer outra letra do alfabeto.
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