Apesar de Janaína Paschoal, advogada da acusação, ter resolvido não oferecer réplica à fala de José Eduardo Cardozo, que defende Dilma Rousseff, a decisão final sobre o impeachment da presidente afastada acabou ficando para esta quarta-feira, por decisão do presidente do STF, Ricardo Lewandowski. Um tempo adicional para examinarmos uma argumentação de Cardozo em seu discurso de terça-feira sobre o que seriam, para ele, as reais razões do impeachment. Um raciocínio sutil que esconde uma conclusão perigosa.

CARREGANDO :)

Cardozo alegou repetidamente que Dilma estava sendo julgada não pelas “pedaladas” ou pelos decretos fraudulentos, mas pelo que chamou de “conjunto da obra”: uma presidente que governou para os pobres, desagradou as elites e não quis frear a Lava Jato (um “conjunto” de conotação positiva) foi levada ao banco dos réus por uma tecnicalidade que camuflaria o real motivo do impeachment. O raciocínio do “conjunto da obra” é usado por defensores de Dilma – e, em menor grau, por seus adversários – também com outro sentido, negativo: a presidente estava caindo não pelas fraudes, mas pela condução desastrosa da economia, pela má interlocução com o Legislativo, pela destruição da Petrobras, pelo estelionato eleitoral. Em qualquer dos casos, esse raciocínio só pode levar à conclusão, errônea, de que o impeachment seria realmente um golpe.

Nem todo crime de responsabilidade é de fácil comprovação

Publicidade

Afinal, ambos os “conjuntos da obra” descritos anteriormente só podem servir para a queda de um chefe de governo em um regime parlamentarista, por meio do voto de desconfiança. Em um regime presidencialista, a mera incompetência, a impopularidade ou a relação belicosa com o Congresso não podem, em hipótese alguma, embasar um impeachment. No ordenamento jurídico brasileiro, é imprescindível a comprovação de um crime de responsabilidade (cujo julgamento cabe ao Senado, como ocorre agora) ou de crime comum (caso em que o presidente seria julgado pelo STF). Eis por que a tese do “conjunto da obra” é agradável ao petismo e foi usada por Cardozo, pois confirma a ideia de que Dilma estaria sendo cassada por motivos que, no presidencialismo, não justificam um impeachment – ou seja, uma cassação ilegal.

No entanto, existe um terceiro “conjunto da obra” que é preciso considerar: uma coleção de efetivos crimes de responsabilidade cometidos pelo mandatário – algo que, no caso de Dilma, é fácil de observar. Às “pedaladas” e fraudes contábeis de 2015, objeto concreto do pedido de impeachment analisado no Senado, somam-se essas mesmas irregularidades cometidas também durante o primeiro mandato e que já poderiam justificar o impeachment, pois o parágrafo 4.º do artigo 86 da Constituição diz que o presidente da República “não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções”, sem com isso erigir um muro entre mandatos subsequentes na mesma função – seria um contrassenso considerar que a posse no segundo mandato significasse uma anistia em relação a todo crime cometido nos quatro anos anteriores. Além disso, como se não bastassem as fraudes no orçamento, é evidente também que Dilma prevaricou ao não agir para impedir a pilhagem da Petrobras.

Mas nem todo crime de responsabilidade é de fácil comprovação. Nada mais natural, portanto, que os proponentes do impeachment buscassem alguns poucos pontos sobre os quais não haveria dúvida, a fim de construir uma acusação sólida, ainda que para isso fosse necessário deixar passar o restante das irregularidades. É o que fizeram Janaína Paschoal, Hélio Bicudo e Miguel Reale Junior: para evitar consequências de uma interpretação torta do artigo 86 da CF, concentraram-se nas fraudes de 2015, fartamente documentadas e que não são “mera tecnicalidade”, dada a gravidade das gambiarras orçamentárias.

O fato de alguns senadores terem dedicado seus discursos a aspectos alheios à acusação propriamente dita ou as insinuações de que um governante popular jamais cairia pelos mesmos motivos de Dilma não escondem a existência concreta dos crimes de responsabilidade da presidente afastada. É por eles, e só por eles, que ela cai.

Publicidade