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Bloqueio de contas inteiras nas redes começou no STF com Alexandre de Moraes e depois foi regulamentada pelo ministro no TSE.
Bloqueio de contas inteiras nas redes começou no STF com Alexandre de Moraes e depois foi regulamentada pelo ministro no TSE.| Foto: Nelson Jr./SCO/STF

Das inúmeras medidas claramente autoritárias que o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) adotaram nos últimos tempos – este, durante a recente campanha eleitoral; aquele, ao menos desde 2019, quando do início do abusivo inquérito das fake news –, existe uma cuja gravidade tem passado despercebida, em parte por não ser tão aparente, em parte porque outras medidas como prisões acabam chamando mais a atenção. Falamos da suspensão total de perfis em mídias sociais, e que hoje atinge inúmeras pessoas físicas e jurídicas: jornalistas, influenciadores digitais, empresários e até mesmo parlamentares com mandato ou eleitos para a próxima legislatura, empresas e partidos políticos. Todos estão impedidos, por ordem judicial, de manter seus perfis ou de criar novas contas nas principais plataformas de mídia social.

A suspensão, é bem verdade, não é invenção da Justiça brasileira. As próprias Big Techs se prestaram com gosto a esse papel, especialmente durante a pandemia de Covid-19, quando até mesmo a publicação de estudos revisados por pares em revistas científicas podia render “ganchos” de no mínimo alguns dias por contrariar supostos “consensos” a respeito de tratamentos ou de medidas preventivas como os lockdowns. Quando as suspensões ou cancelamentos de contas partem da mídia social, ainda seria possível argumentar que se trata de uma relação entre entes privados (o usuário e o site), e mesmo assim já se trata de medida potencialmente problemática. Afinal, as mídias se descrevem como meras plataformas, intermediários que as pessoas usam para se comunicar – com isso, as empresas evitam responsabilização legal pelo que é publicado nos perfis. No entanto, na prática, ao apagar conteúdos ou contas, elas se portam como editoras, ou publishers, o que altera completamente seu status legal e as torna sujeitas a uma série de exigências. Mas mesmo este comportamento das mídias sociais ainda é menos grave que a imposição judicial para que elas cancelem perfis e impeçam seus donos de seguir publicando em contas novas.

Impedir judicialmente alguém, pessoa física ou jurídica, de manter uma conta em mídias sociais é não apenas censura, mas censura prévia, do tipo exato que a Constituição veda explicitamente

A suspensão completa de perfis é medida não prevista expressamente no ordenamento jurídico brasileiro. Não está em nenhum dos códigos que listam medidas cautelares que a Justiça pode adotar, e não aparece nem mesmo no Marco Civil da Internet, que em seu artigo 19, parágrafo 1.º, afirma claramente que eventuais ordens judiciais de retirada de conteúdo precisam conter “identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material” – mais ainda: se isso não ocorrer, a ordem judicial se torna nula. Por mais que o Marco Civil já tenha oito anos e seja anterior à epidemia de fake news, em nenhum momento o legislador achou necessário ou conveniente acrescentar o banimento entre as medidas que estariam à disposição da Justiça.

E isso por uma razão tão simples quanto ignorada: impedir judicialmente alguém, pessoa física ou jurídica, de manter uma conta em mídias sociais é não apenas censura, mas censura prévia, do tipo exato que a Constituição veda explicitamente, pois não estamos falando da proibição justificável de conteúdos efetivamente criminosos, e sim do silenciamento puro e simples. O inciso IX do artigo 5.º afirma que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”; e o artigo 220, que em seu caput diz que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”, acrescenta, no parágrafo 2.º, que “é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.

Censura prévia, sim, porque o indivíduo, empresa ou entidade que a Justiça impede de ter contas em mídias sociais fica proibido de se manifestar publicamente sobre quaisquer assuntos, dos mais prosaicos aos mais essenciais, ainda que o que tivesse a dizer não ferisse o Código Penal ou qualquer outra lei. Sem as mídias sociais, são pouquíssimos os brasileiros que têm a oportunidade de se fazer ouvir e de tornar públicas suas opiniões; o banimento é, assim, o equivalente em menor escala ao fechamento de um veículo de imprensa por ordem judicial, algo que qualquer cidadão não hesitaria em classificar como uma agressão indescritível à liberdade de expressão.

E, ao fazer tal comparação, dizemos “em menor escala”, mas não de menor gravidade. Afinal, a comunicação é uma dimensão essencial do ser humano. Calar alguém é negar-lhe dignidade; é a aniquilação do indivíduo. É por isso que o Marco Civil da Internet prevê apenas a exclusão de conteúdos isolados que de fato violem a legislação nacional e que estejam devidamente identificados na decisão judicial, jamais uma exclusão “por atacado”, muito menos a suspensão do perfil, que são medidas claramente desproporcionais e vão muito além da resposta legal que se admite diante de um conteúdo que efetivamente viole a lei. O cancelamento de perfis não passa pelos filtros do princípio da proporcionalidade, e por isso é o tipo de restrição que jamais deveria ser aceito.

Até mesmo as Big Techs estão percebendo isso, como se vê na ação conjunta das mídias com escritório no Brasil contra a censura imposta pelo ministro Alexandre de Moraes ao Partido da Causa Operária (PCO). “O bloqueio integral do perfil do Partido da Causa Operária (PCO) na iminência do início do período eleitoral poderia violar, com a devida vênia, dispositivos constitucionais e a própria legislação infraconstitucional relativa à matéria, tendo em vista a possibilidade de caracterização de censura de conteúdo lícito existente nos mais de 20 mil tweets postados pelo usuário desde 2010 e, especialmente, de censura prévia de conteúdo futuro lícito, não necessariamente vinculado ao objeto do inquérito em curso”, afirmaram os advogados do Twitter.

As demais mídias seguiram a mesma linha. “A remoção de um canal inteiro resultaria tanto no cerceamento genérico de discursos passados, sem nenhuma relação com o objeto da investigação, quanto na censura prévia de novos conteúdos sobre quaisquer temas, de forma incompatível com a Constituição e a jurisprudência histórica desse Egrégio Supremo Tribunal Federal”, acrescentou o Google. “A medida de bloqueio completo e irrestrito do canal seria uma clara violação à liberdade de expressão, sob pena de generalização de que todas as publicações do canal, passadas, presentes e futuras, seriam criminosas, o que não pode ser confirmado”, alegou o Telegram.

A suspensão de perfis, como vem sendo feita, equivale ao fechamento de um veículo de imprensa por ordem judicial, algo que qualquer cidadão não hesitaria em classificar como uma agressão indescritível à liberdade de expressão

Os argumentos são tão cristalinos e contundentes que Moraes não teve como enfrentá-los, sempre limitando-se a repetir a decisão original e acrescentar que “o recorrente não apresentou qualquer argumento minimamente apto a desconstituir os óbices apontados. Nesse contexto, não há reparo a fazer no entendimento aplicado”. Ora, na verdade as mídias foram totalmente capazes de apontar o erro da decisão judicial; foi a Moraes que faltou a capacidade de explicar como a suspensão dos perfis do PCO não configuraria censura prévia nem ataque à liberdade de expressão. Capacidade que também faltou aos sete ministros que seguiram o relator sem nem apresentar votos escritos, bem como a Rosa Weber, que ao menos publicou um voto citando a necessidade de a democracia ter “instrumentos de autodefesa”, sem perceber a evidente contradição de invocar medidas totalmente antidemocráticas a pretexto de defender a democracia. Apenas Nunes Marques e André Mendonça foram contrários à censura, defendendo em seus votos a liberdade de expressão. Apesar da derrota do recurso das empresas, o caso ainda aguarda o julgamento de mérito.

Diante da presença de conteúdos potencialmente criminosos nas mídias sociais, a única resposta aceitável é a ação pontual: identifica-se, analisa-se e, se for o caso, exclui-se aquele determinado texto, vídeo ou imagem, em um processo que deve ser repetido quantas vezes for necessário, por mais trabalhoso ou exaustivo que isso seja. Ir além disso é atacar frontalmente a liberdade de expressão, um dos pilares de qualquer democracia. E tirar de alguém o direito à palavra pela supressão de perfis é mais que autoritário, beirando o totalitarismo distópico.

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