Nenhum poder ou instituição está imune a críticas — ao menos, é o que se espera em um Estado Democrático. Mas, em um país onde a liberdade de expressão é alvo constante de ataques advindos das mais variadas frentes, inclusive das instituições que deveriam ser garantidoras desse direito fundamental, o que não faltam são demonstrações de quão pouco receptivos são os integrantes dos Três Poderes a quaisquer mensagens de teor mais crítico — como mostra a imediata reação do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luís Roberto Barroso, a uma matéria da revista inglesa The Economist.
Esta não foi a primeira vez em que Barroso tenta responder às críticas da imprensa. Em janeiro deste ano, o ministro já havia publicado um artigo n’O Estado de S. Paulo, rebatendo alguns editoriais do jornal com críticas à atuação do STF. Agora, o alvo do ministro foi um texto publicado no dia 16 de abril pela The Economist, em que a revista alerta para uma realidade que os brasileiros, infelizmente, conhecem muito bem: o excesso de poder do STF. Mencionando a atuação do ministro Alexandre de Moraes como exemplo do protagonismo indevido da corte, a revista afirma que o poder do Judiciário brasileiro precisa ser reduzido. Segundo a publicação, Moraes trava “uma cruzada contra discursos antidemocráticos on-line, exercendo poderes surpreendentemente amplos, que têm como alvo majoritariamente atores de direita”, e que o “poder irrestrito” aumenta a possibilidade de o STF se “tornar um instrumento de impulsos antiliberais que infringem a liberdade, em vez de apoiá-la”.
Como bem pontuou a 'The Economist', além de políticos corruptos e mal-intencionados — que, infelizmente, existem aos montes —, o que ameaça de fato a democracia brasileira é a falta de comedimento nas cortes superiores
Embora considere que a atuação dos ministros do STF aconteça “dentro da legalidade”, o artigo criticou as idas e vindas das regras da corte, lembrando o desmonte da Lava Jato — desmonte este recentemente citado pelo ministro Gilmar Mendes como motivo de “orgulho”. A revista ainda comenta que comportamentos arbitrários dos ministros “se tornaram comuns” e que é preciso mais “moderação” por parte da corte. A publicação ainda menciona que o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro pela Primeira Turma do STF, formada por cinco ministros — e não pelo plenário da corte —, pode reforçar a “percepção de que o tribunal é guiado tanto pela política quanto pela lei” e fazer o Judiciário perder ainda mais confiança entre a população brasileira.
O texto da The Economist não traz nada de novo — a revista, aliás, foi bastante comedida em sua análise —, mas o que se viu a seguir foi a comprovação de que, aos ministros da corte, realmente falta moderação e discrição. Na nota dirigida à The Economist, Barroso tenta desmerecer a matéria, dizendo que "o enfoque dado na matéria corresponde mais à narrativa dos que tentaram o golpe de Estado" — frase que caberia bem a um político partidário, mas não a um juiz da corte que vai julgar se houve ou não tentativa de golpe de Estado no país.
O presidente do STF, talvez sentindo-se pessoalmente atingido pela revista inglesa, atropela o bom senso e os fatos, apelando para distorções e informações contestáveis ao afirmar, entre outras coisas, que "todas as decisões de remoção de conteúdo foram devidamente motivadas" e se referiam a crimes ou tentativa de golpe. Ora, o infindável inquérito das fake news — base dessas decisões — segue sob sigilo desde 2019 e, em diversas ocasiões, usuários tiveram contas suspensas sem intimação prévia nem acesso à fundamentação legal da medida, como relatado por vários parlamentares, influenciadores e jornalistas atingidos. Em janeiro deste ano, por exemplo, o STF derrubou todas as redes sociais da Revista Timeline, também sem qualquer explicação. Os perfis da revista ainda continuam bloqueados.
Barroso ainda garante, na nota, que todos os supostos envolvidos nos atos de 8 de janeiro "estão sendo processados criminalmente, com o devido processo legal". Já mencionamos, em outras ocasiões, as flagrantes violações ao devido processo legal cometidas ao longo dos processos e julgamentos envolvendo o 8 de janeiro, como a falta de acesso integral aos autos do processo. Trata-se de uma violação tão patente que até o presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Beto Simonetti, se manifestou a respeito, argumentando que isso restringe a atuação dos advogados de defesa dos acusados.
Outro ponto questionável da nota é o de que “o presidente do Tribunal nunca disse que a corte ‘derrotou Bolsonaro’” e que foram os eleitores os responsáveis por sua derrota. Embora haja uma sutil alteração na forma da frase, é bem sabido que Barroso disse publicamente, em 2023, “nós derrotamos o bolsonarismo” durante participação em um evento da UNE — movimento tradicionalmente ligado a partidos de esquerda. Há, inclusive, vídeos que atestam a fala. Mais tarde, o ministro tentou emendar, dizendo que, por “bolsonarismo”, estava se referindo ao “extremismo golpista e violento” — palavras, aliás, que passaram a ser usadas pelos ministros como salvaguarda para justificar todas as ações da corte e torná-las inquestionáveis.
Barroso, como presidente da corte, poderia até responder às críticas da revista — mas sem tentar desmerecer a inteligência ou a capacidade de análise do público, ou desvirtuar o teor da reportagem, atribuindo-a a um produto do “golpismo”. Críticas a um político, poder ou instituição deveriam servir como alerta — ainda mais quando vindas de uma revista internacional. Se até do outro lado do oceano as ações da Suprema Corte brasileira causam questionamentos, é sinal de que a tão propalada “normalidade democrática”, supostamente salva pela corte, está bem longe de ser alcançada.
Como bem pontuou a The Economist, além de políticos corruptos e mal-intencionados — que, infelizmente, existem aos montes —, o que ameaça de fato a democracia brasileira é a falta de comedimento nas cortes superiores. Mesmo talvez bem intencionados, seus membros insistem em deixar de lado o papel de juízes discretos e atentos apenas ao dever de bem julgar, para abraçar um papel que não lhes cabe: uma atribuição quase messiânica de conduzir o país. É exatamente isso que afasta o Brasil cada vez mais da real normalidade democrática — e o aproxima dos extremismos e autoritarismos.