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Os presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro
Por enquanto, Bolsonaro não deve se manifestar sobre derrota de Trump.| Foto: AFP

Não é segredo para ninguém que Jair Bolsonaro tem grande admiração por Donald Trump, e os dois presidentes têm compartilhado plataformas comuns, especialmente na atuação global em temas de comportamento, como a defesa da vida e da liberdade religiosa. Essa aliança, no entanto, não impediu que Trump tomasse algumas medidas prejudiciais ao Brasil, como no campo do comércio exterior, afetando as exportações brasileiras de aço e alumínio com decisões protecionistas. Isso porque também é princípio básico da diplomacia que as relações internacionais se dão entre Estados, e não tanto entre pessoas. Afinidades podem ajudar na busca de entendimentos, mas não estão acima dos interesses de cada nação. Este princípio, infelizmente, está sendo colocado de lado por Bolsonaro em dois casos, um de repercussão mundial e outro, de alcance regional.

Até o momento, Bolsonaro é um dos poucos líderes que ainda não cumprimentaram ou reconheceram Joe Biden como presidente eleito dos Estados Unidos, e nisso está em companhia pouco agradável – também não o fizeram o russo Vladimir Putin, o chinês Xi Jinping e o norte-coreano Kim Jong-un. Mesmo aliados de Trump já tomaram esse passo, como o premiê britânico Boris Johnson, que telefonou ao democrata; o israelense Benjamin Netanyahu também cumprimentou Biden e sua vice, Kamala Harris, embora não tenha usado o termo “presidente eleito” em sua mensagem de vídeo.

A eleição americana tem suas peculiaridades em relação à divulgação dos resultados. A contagem de delegados necessários para conseguir a vitória no Colégio Eleitoral é feita pela imprensa, com base nos dados oficiais da apuração em cada estado; quando os números apontam de forma inequívoca para a vitória de um dos candidatos, os órgãos de imprensa “atribuem”-lhe aquele estado – o termo em inglês é “call”. Os resultados oficiais propriamente ditos saem apenas em dezembro. Isso nunca impediu que, em eleições anteriores, o vencedor fosse anunciado de forma incontestável logo depois da eleição – as manchetes “Donald Trump derrota Hillary Clinton” estavam em todos os jornais norte-americanos em 9 de novembro de 2016, apenas um dia depois da votação.

Ainda que Bolsonaro alegue querer esperar até o fim de todas as ações judiciais de Trump, seu silêncio acaba isolando-o na comunidade internacional

É bem verdade que esta eleição é atípica em muitos aspectos. O estado do Arizona foi “atribuído” a Joe Biden quando ainda havia muitos votos a apurar, levando vários órgãos de imprensa a rever suas contas quando o equívoco ficou evidente. Mas a maior controvérsia gira em torno das acusações de fraude em estados-chave para a disputa, como Pensilvânia, Geórgia, Michigan e Wisconsin. Trump vem acionando o Judiciário para conseguir recontagens ou impugnação de votos, na esperança de reverter os resultados prévios daqueles estados em seu favor – um direito que indubitavelmente lhe cabe, especialmente diante de vários relatos de situações que merecem maior investigação.

É por isso que, embora Biden esteja sendo considerado presidente eleito, tecnicamente não se pode dar a eleição como definida enquanto não se esgotar a via judicial. Isso significa, então, que todos os demais líderes mundiais teriam se precipitado ao reconhecer ou cumprimentar o democrata? Certamente que não. Os dados oficiais da apuração apontam que Biden já venceu estados suficientes para ter a maioria do Colégio Eleitoral. Além disso, uma semana depois do dia da eleição, ainda não há nenhuma intervenção relevante da Suprema Corte ordenando recontagens ou invalidação de votos – uma decisão favorável a Trump referente à Pensilvânia só determina a separação de determinados votos.

Aqui reside uma diferença importante em relação a outra eleição que terminou na Justiça, a de 2000, em que George W. Bush venceu Al Gore. Naquele caso, a recontagem na Flórida começou já no dia seguinte à eleição, e foi seguida por uma série de outras recontagens em condados específicos até que a Suprema Corte interviesse, no início de dezembro. A Flórida nunca chegou a ser “atribuída” a Bush (ao contrário – a imprensa inicialmente afirmara que Gore tinha sido o vencedor, mudando o status em poucas horas quando a indefinição ficou evidente) porque ali nunca tinha havido vantagem significativa durante a apuração, ao contrário do que ocorre agora nos estados em que Biden tem vantagem de milhares, ou dezenas de milhares de votos, suficientes para lhe garantir a vitória.

Portanto, ainda que Bolsonaro alegue querer esperar até o fim de todas as ações judiciais de Trump, seu silêncio acaba isolando-o na comunidade internacional, até porque o Brasil tem relação mais próxima com os Estados Unidos, ao contrário de Rússia, China ou Coreia do Norte, antagonistas de Washington. Não haveria nenhum demérito ou precipitação em reconhecer que, dados os números das apurações em cada estado, Biden é o vencedor do pleito presidencial americano. Bolsonaro não teria absolutamente nada a perder ao fazer esse reconhecimento agora. Se eventualmente houver a comprovação de fraudes a ponto de gerar uma reversão do resultado na Justiça, a reação óbvia será a de cumprimentar Trump como presidente reeleito, como fariam todos os demais líderes que já se dirigiram a Biden como presidente eleito. E tudo isso sem ressentimento algum.

Também regionalmente Bolsonaro está colocando as afinidades pessoais ou ideológicas acima das relações entre Estados. Depois de ter – acertadamente – enviado o vice-presidente Hamilton Mourão à posse do esquerdista Alberto Fernández, na Argentina, em dezembro de 2019, o presidente limitou-se a mandar o embaixador brasileiro na Bolívia, Octavio Cortes, à posse do também socialista Luis Arce na presidência do país andino, ocorrida no último fim de semana. Isso apesar de Evo Morales (o padrinho político de Arce) ter comparecido à posse de Bolsonaro, de haver uma série de temas que exigem cooperação mútua entre os países (como as fronteiras terrestres), e de Brasil e Bolívia terem uma relação comercial importante – ainda que a dependência brasileira do gás natural boliviano tenha caído nos últimos anos.

A boa diplomacia não tem de abrir mão de princípios, mas compreende que, nas relações exteriores, não pode se limitar apenas ao diálogo com quem demonstra afinidade. A promoção dos interesses brasileiros exige a construção de pontes também com aqueles países ocasionalmente governados por pessoas cujas ideologias destoam das convicções que norteiam os atuais ocupantes do Planalto e da Esplanada dos Ministérios. Afinal, presidentes e primeiros-ministros são periodicamente substituídos, mas os Estados e a necessidade de trabalho em conjunto permanecem. O Brasil começa mal com os novos governantes de Estados Unidos e Bolívia, mas terá inúmeras chances de melhorar suas relações; que não as desperdice.

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