
De forma nada surpreendente, dadas as diversas manifestações de ministros do Supremo Tribunal Federal nos últimos meses, a Primeira Turma da corte tornou Jair Bolsonaro réu ao aceitar, de forma unânime, a denúncia oferecida pela Procuradoria-Geral da República contra o ex-presidente e outros sete aliados, incluindo quatro oficiais-generais das Forças Armadas. Eles, agora, serão julgados pelos crimes de organização criminosa armada; tentativa de golpe de Estado; tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito; dano qualificado pela violência e grave ameaça contra patrimônio da União; e deterioração de patrimônio tombado.
A aceitação da denúncia não equivale a um veredito negativo; significa apenas que os ministros consideram haver elementos suficientes para que o grupo seja levado a julgamento – embora não seja muito difícil prever qual será o desfecho, dado o hábito nada saudável dos ministros de se pronunciar sobre tudo, inclusive deixando subentendidos os futuros votos. E a Gazeta do Povo, em várias ocasiões, já apontou fraquezas na maneira como o suposto golpe de Estado vem sendo investigado – preocupa-nos especialmente a possibilidade de criminalização de atos de cogitação e preparação, que a lei penal brasileira não pune. Mas, neste momento, interessa-nos chamar a atenção para uma tendência extremamente preocupante, que não se limita a este caso específico, e que mostra o quão longe o Brasil está de uma verdadeira democracia: a sutil abolição do devido processo legal.
Ao apresentar vídeo que não estava nos autos, Alexandre de Moraes se portou como assistente de acusação, e não como o julgador imparcial que todo magistrado deveria ser
Neste sentido, é emblemática uma intervenção do ministro Luiz Fux, único membro da Primeira Turma a divergir em um ponto bastante importante: a competência do Supremo para julgar Bolsonaro e os outros sete denunciados. Embora tenha votado pelo recebimento da denúncia, Fux considerou que o caso não deveria ser julgado pelo STF. “Ou nós estamos julgando pessoas que não exercem mais função pública e não têm mais foro de prerrogativa do Supremo, ou nós estamos julgando pessoas que têm essa prerrogativa. E o local correto seria, efetivamente, o plenário do STF”, apontando para uma outra possibilidade: a de que todos os 11 ministros da corte participassem do julgamento, e não apenas os cinco da Primeira Turma.
Fux foi voto vencido, mas deixou um aviso: “a incompetência absoluta é um vício que é passível de ser alegado, inclusive, na rescindibilidade do julgado. E nós aqui, na Primeira Turma, temos vários habeas corpus, que foram impetrados, e que por incompetência absoluta, foram concedidas as ordens” – em outras palavras: o julgamento poderia ser anulado no futuro por incompetência da turma ou do STF. E a única resposta que o Supremo pode dar a esse questionamento é um raciocínio circular: os ministros podem julgar Bolsonaro porque eles mesmos decidiram que podem julgar Bolsonaro. No caso do ex-presidente da República e dos denunciados que ocuparam cargos de ministros de Estado, o STF agora pode invocar em seu favor a mudança casuísta nas regras da prerrogativa de foro, aprovada recentemente (com o voto contrário de Fux), mas o mesmo não pode ser dito de todos os outros denunciados que jamais tiveram foro privilegiado.
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O ministro ainda chamou a atenção para os problemas envolvendo a espinha dorsal da denúncia da PGR: a colaboração premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. Apesar de ter votado para manter a validade da delação, Fux ressalvou que “nove delações não representam nenhuma delação. Não tenho a menor dúvida que houve omissão. Tanto que foram feitas nove delações [...] Vejo com muita reserva nove delações do mesmo colaborador, cada hora acrescentando uma novidade. Me reservo o direito de analisar no momento próprio a nulidade e eficácia dessas delações sucessivas”. Só faltou a Fux mencionar as sérias dúvidas sobre o caráter livre da delação, depois de episódios como os áudios em que Cid afirma ter sido coagido a falar o que as autoridades queriam ouvir, e especialmente depois da ameaça explícita (e devidamente registrada) de Alexandre de Moraes contra a família de Cid, com direito a um “não vai dizer que não avisei”.
Tudo isso já era conhecido, mas o julgamento desta semana ainda reservava uma surpresa. Enquanto lia seu voto, na quarta-feira, Moraes sacou da cartola um vídeo com cenas editadas do 8 de janeiro, elemento que não constava nos autos e não era conhecido pela defesa – e, ainda que fosse, só poderia ter sido apresentado pela PGR, jamais por um dos ministros da Primeira Turma. Na prática, Moraes se portou como assistente de acusação, e não como o julgador imparcial que todo magistrado deveria ser.
O devido processo legal é uma condição sine qua non para um país se considerar democrático. Mas os ministros do STF decidiram que, para “salvar a democracia”, podem e devem ignorá-lo
Juízo incompetente, delações obtidas sob coação, juiz colaborando com a acusação: praticamente tudo aquilo de que a Lava Jato foi injustamente acusada (inclusive por ministros do Supremo), e que serviu de alegação para o desmonte total da maior operação de combate à corrupção da história do Brasil, acontece agora dentro do próprio STF, por iniciativa ou com o endosso da maioria dos membros da corte. É por isso que, embora impecável no conteúdo, o aviso de Fux também traz consigo uma certa ingenuidade: afinal, para que tudo o que está ocorrendo agora seja declarado nulo, seria preciso que os próprios responsáveis pelas nulidades o admitissem, e esperar isso das figuras que hoje ocupam as cadeiras do Supremo é em vão.
A expressão “devido processo legal” significa simplesmente que todos, dos inocentes falsamente acusados até o pior dos facínoras, têm direito a um julgamento justo. Ele é uma conquista civilizatória construída ao longo de séculos, é uma condição sine qua non (ainda que não a única) para um país se considerar democrático. Mas os ministros do STF, com Alexandre de Moraes à frente, decidiram que, para “salvar a democracia”, podem e devem fazer o que desejarem, sem se importar com essa garantia democrática. Esta não é uma contradição inofensiva; é uma hipocrisia fatal para um país obrigado a viver sob um regime de supremo arbítrio.



