
Na tese definida pelo Supremo Tribunal Federal após o julgamento que considerou parcialmente inconstitucional o artigo 19 do Marco Civil da Internet, a corte, enquanto finalizava o que talvez seja o maior ataque da história recente à liberdade de expressão no Brasil, parecia fazer um aceno ao Poder Legislativo. O item 2 afirmava que a decisão teria efeitos “enquanto não sobrevier nova legislação”, enquanto o item 13 fazia um apelo “ao Congresso Nacional para que seja elaborada legislação capaz de sanar as deficiências do atual regime quanto à proteção de direitos fundamentais”. No entanto, só os muito ingênuos haverão de ver nestes dois trechos alguma demonstração de respeito dos ministros pelo papel dado pela Constituição aos legisladores eleitos pelo povo. Ambas as frases não passam de cinismo puro e simples.
O caso do Marco Civil da Internet é o mais recente de uma série de outros julgamentos em que o Supremo, alegando exercer o chamado “controle de constitucionalidade” – que de fato é papel da mais alta corte do país – e não raro apontando supostas “omissões” do Poder Legislativo, altera leis perfeitamente constitucionais, acrescentando-lhes ou retirando-lhes itens de acordo com preferências pessoais. O Tema 506, por exemplo, que retirou da Lei de Drogas um artigo que não violava a Carta Magna para permitir a descriminalização da posse de até 40 gramas de maconha, também traz a expressão “até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito”. Da mesma forma, a tese resultante da ADO 26, que equiparou a homofobia ao racismo, começa dizendo que os efeitos da decisão duram “até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional”.
O Poder Legislativo, doravante, só poderá legislar a respeito de temas que já foram alvo de decisões do Judiciário caso aprove leis que, no mínimo, coincidam com as teses definidas pelos ministros
Ilusão pura. Afinal, suponhamos por um instante que o Congresso Nacional de fato delibere longamente sobre qualquer um desses três assuntos, convoque especialistas, negocie o texto de um projeto de lei e finalmente o aprove. Suponhamos, também, que tal projeto não corresponda àquilo que o Supremo havia decidido anteriormente – por exemplo, se a opção do legislador for pela volta da criminalização do porte de qualquer quantidade de drogas, ou que se descriminalize uma quantidade bem menor que os 40 gramas. Quem duvidaria que, no minuto seguinte, o Supremo seria acionado e derrubaria tal legislação, com um novo apelo ao Congresso para que, desta vez, “faça a coisa certa”?
Pois, no fim, é disso que se trata. O Congresso está amarrado pelo que o Supremo decidiu. O Poder Legislativo, doravante, só poderá legislar a respeito de temas que já foram alvo de decisões do Judiciário caso aprove leis que, no mínimo, coincidam com as teses definidas pelos ministros – ou, então, que sejam ainda mais restritivas (como no caso das possibilidades de remoção de conteúdos da internet) ou mais permissivas (como no caso da posse de drogas), dependendo do assunto em debate. Qualquer outro desfecho que desvie desse roteiro pré-determinado será fatalmente contestado e anulado na suprema corte.
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Ninguém precisa ser um especialista na obra de Montesquieu para saber que este modelo é frontalmente contrário à necessária independência entre os poderes. Na prática, temos um Legislativo subordinado ao Judiciário, com um Supremo que se coloca na posição de recusar as conclusões do Congresso sobre os temas que os ministros pediram aos parlamentares que discutissem. E, caso deputados e senadores de fato cristalizem em lei votada e aprovada o entendimento prévio dos magistrados, não estarão fazendo mais que lavando as mãos dos ministros, pois a partir de então eles poderão dizer que vale o dito pelo Congresso, e seguirão chamando o ativismo judicial de “mito”, como já fez Luís Roberto Barroso no ano passado.
Uma democracia exige poderes independentes. Ao Judiciário cabe, sim, derrubar leis que sejam de fato contrárias à Constituição; mas não lhe cabe nem abusar do controle de constitucionalidade para anular leis contrárias às convicções dos julgadores, muito menos redigir de punho próprio novas regras para substituir tais leis, e tampouco exigir (ainda que sutilmente) do Legislativo que apenas coloque seu carimbo naquilo que os magistrados resolveram escrever, anulando a possibilidade de debate e divergência. Quando isso acontece, estamos diante de um superpoder que se impõe aos demais – e, quando este poder é o Judiciário, o único deles cujos membros não receberam o mandato popular, “juristocracia” é o nome mais adequado para descrever tal estado de coisas.



