| Foto: Leticia Akemi Gazeta do Povo

Em mais um capítulo da polarização nas redes sociais, caiu como uma bomba sobre a internet a condenação em primeira instância do humorista Danilo Gentili por crime de injúria contra a deputada Maria do Rosário (PT-RS), cometido em um vídeo divulgado pelo comediante em junho de 2017. O caso convida a reflexões que extrapolam as clivagens ideológicas. Se o fato de os personagens envolvidos na polêmica serem ambos notórios na guerra política virtual não pode nos fazer esquecer que a liberdade de expressão não é um direito absoluto, também é verdade que a pena rigorosa imposta a Gentili, como forma de reafirmar esse princípio, pode ter o efeito inverso ao pretendido.

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Em nenhum país do mundo a liberdade de expressão é um direito absoluto. Os Estados Unidos, nação sempre lembrada quando o assunto é esse, construíram ao longo do século 20 uma jurisprudência que alargou a proteção à liberdade de expressão em detrimento das garantias à honra dos indivíduos. Mas a posição absolutista, defendida pelos Justices Black e Douglas da Suprema Corte, embora tenha tido influência nessa construção, nunca vingou por completo, nem mesmo lá. Já a tradição brasileira, compartilhada pelos países europeus, é ainda mais equilibrada no equacionamento das tensões entre a proteção à liberdade de opinião e de crítica e à honra e à imagem dos indivíduos. 

A jurisprudência sempre buscou critérios para aplicar a lei corretamente no difícil limiar entre a liberdade de crítica e o insulto injurioso

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De fato, a doutrina e a jurisprudência brasileira sempre entenderam que esse equilíbrio no embate entre a honra e a liberdade de expressão, ambos bens protegidos pela Constituição, deve ser buscado na legislação – daí a criminalização da calúnia, da difamação e da injúria. Ciente das dificuldades e sutilezas desse campo, a própria lei já protege de maneira especial “a opinião desfavorável da crítica literária, artística ou científica”, mas não quando há “inequívoca a intenção de injuriar ou difamar”. A intenção é clara: a liberdade de crítica e de opinião é especialmente larga nos casos em que há interesse público, mas nenhum artista ou cientista poderia tentar se esconder por trás do manto profissional para insultar livremente outra pessoa. 

Da mesma maneira, a jurisprudência sempre buscou critérios para aplicar a lei corretamente no difícil – reconhecemos – limiar entre a liberdade de crítica e o insulto injurioso. É preciso reconhecer, primeiro, que toda crítica embute algum traço de agressividade: a injúria acontece quando se abusa, para além do razoável, do ataque ao outro. Tampouco é de somenos, nesse caso, que a deputada seja uma figura pública, a quem se reconhece uma proteção mais tímida da honra, porque a atividade política envolve discussões mais acaloradas e a possibilidade de receber críticas mais agudas. Mas nenhuma figura pública tem anulada por completo a proteção da própria honra e a baliza deve ser colocada, nessas hipóteses, quando a expressão injuriosa é muito mais uma pura afronta à honra do que uma contribuição efetiva para o debate público. 

Quando da divulgação do vídeo de Danilo Gentili, esta Gazeta do Povo já enxergava injúria na manifestação do humorista, que excedeu todos os limites do decoro e escolheu atacar Maria do Rosário não só em sua condição de deputada federal, mas em sua condição de mulher. O vídeo foi além da crítica política ferina, da ironia ou mesmo do sarcasmo e, de fato, se traduz em puro insulto e desprezo. O Judiciário, portanto, age bem quando reafirma a compreensão tradicional do direito brasileiro no tocante ao respeito à honra e contraria a tendência de perda generalizada da sensibilidade da opinião pública para essas distinções. Com a emergência das redes sociais, o país acostumou-se à enxurrada diária de insultos, ataques e desprezo pela honra, pela imagem e pela dignidade dos outros – insultos estes muitas vezes bem mais pesados que os dirigidos por Gentili a Maria do Rosário, mas que acabam não chegando aos tribunais. 

Nossas convicções: Liberdade de expressão

Leia também: Danilo Gentili e os limites da liberdade de expressão (editorial de 19 de junho de 2017)

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Quando esses casos chegam ao Judiciário, porém, essa compreensão tradicional é reafirmada corriqueiramente nos tribunais brasileiros. Mas, talvez pensando justamente em mandar uma mensagem clara sobre o tema, aproveitando a notoriedade dos envolvidos, a juíza que condenou Gentili usou de suas prerrogativas legais para impor a ele uma pena bastante dura e fora dos padrões: mesmo condenando-o a pouco mais de seis meses, estipulou o regime inicial no semiaberto e negou a aplicação de pena alternativa ou a suspensão condicional da pena. Dentro dos parâmetros legais, a juíza escolheu ser rígida, mas, diante da dessensibilização que impera no debate público, essa talvez não fosse a melhor alternativa para quem quer fazer cumprir a proteção à honra: corre-se o risco de transformar o humorista em um mártir da liberdade de expressão, afastando a opinião pública ainda mais do justo equilíbrio entre essa liberdade e a proteção à honra dos indivíduos.

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