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O senador Sergio Moro (União Brasil-PR).
O senador Sergio Moro (União Brasil-PR).| Foto: Roque de Sá/Agência Senado.

Uma fase necessária para os interessados na desconstrução da Operação Lava Jato é a desmoralização e, se possível, a criminalização daqueles que se empenharam no combate à corrupção, como os membros da força-tarefa e os juízes que julgaram e condenaram os protagonistas dos esquemas criminosos. Deltan Dallagnol e outros procuradores já foram punidos no Conselho Nacional do Ministério Público por usarem seu direito constitucional à liberdade de expressão, e o Tribunal de Contas da União também tem contribuído para esta vergonha nacional que consiste na inversão de papéis em que os bandidos são tratados como vítimas e os agentes da lei são tratados como bandidos. Agora, o ex-juiz e senador Sergio Moro (União Brasil-PR) volta a entrar na mira de quem quer enterrar de vez a Lava Jato e seu legado.

Na sexta-feira, dia 14, um vídeo de meros oito segundos com a participação do hoje senador apareceu nas mídias sociais (publicado não por Moro, mas por terceiros), sem a informação do local e data em que teria sido filmado – o contexto indica que se tratava de uma festa junina. Em tom jocoso, diante da brincadeira da “cadeia” (em que o alvo precisa pagar um valor para ser “libertado”), Moro diz “isso é fiança, é instituto, pra comprar um habeas corpus do Gilmar Mendes”. Bastou para que em apenas três dias a vice-procuradora-geral da República Lindôra Araújo oferecesse denúncia ao STF contra o senador por calúnia, “imputando-lhe [a Gilmar Mendes] falsamente o crime de corrupção passiva”. A PGR pede que Moro ainda pague indenização ao ministro e perca o mandato se for condenado a mais de quatro anos de prisão – a pena para o crime de calúnia vai de seis meses a dois anos de prisão, mas pode ser aumentada quando ela ocorre “contra funcionário público, em razão de suas funções”, e “na presença de várias pessoas”.

É inaceitável é que a PGR se preste ao papel de perseguidora por meio de uma denúncia completamente inepta, que erra na forma, erra no conteúdo e erra ao pleitear até mesmo uma perda de mandato, de forma completamente desproporcional

A denúncia da PGR, no entanto, padece de inúmeros problemas, a começar pela questão processual: em maio de 2018, o plenário do Supremo decidiu que a prerrogativa de foro se aplica a um parlamentar apenas quando o crime de que ele é acusado foi cometido durante o exercício do mandato e tenha relação com o cargo – o que evidentemente não é o caso de Moro, que só foi eleito em outubro do ano passado e tomou posse em fevereiro deste ano. A denúncia, portanto, deveria ser remetida à primeira instância, jamais ser enviada ao STF, por mais que a corte ande violando o princípio do juiz natural de forma rotineira, especialmente nos inquéritos abusivos comandados por Alexandre de Moraes.

O erro a respeito da competência, no entanto, empalidece diante da aberração jurídica que é a acusação de calúnia neste caso. Afinal, tanto a doutrina quanto a jurisprudência afirmam, sem a menor sombra de dúvida, que para haver calúnia é preciso que a imputação falsa de crime seja detalhada e se refira a um acontecimento específico. Não basta, assim, dizer que “Gilmar Mendes vende sentenças”, mas é necessário afirmar quando e em que circunstâncias um habeas corpus concreto foi negociado com o ministro. A afirmação genérica, na mais severa das interpretações, poderia constituir injúria, mas aqui é preciso invocar o único contexto identificável no curtíssimo vídeo: trata-se de uma afirmação feita em tom de brincadeira, ou seja, inexiste aqui o animus caluniandi ou o animus injuriandi, sendo mais adequado falar em animus jocandi, e neste caso também a doutrina e a jurisprudência (inclusive em tribunais superiores) são unânimes e extensas no sentido de afastar a existência de crime. Afinal, mesmo que se considere a brincadeira de Moro insensata, insensatez não é crime e, se os critérios de Lindôra Araújo fossem aplicados indistintamente, estaria decretado o fim do humor político no país.

O próprio Moro, em nota, afirmou ter “divergências sérias” com Gilmar Mendes, embora seja bem mais apropriado afirmar que a animosidade é muito maior na direção oposta: o ministro não perde uma chance de atacar o ex-juiz e os ex-membros da força-tarefa, e ofensas pesadas de Mendes a Dallagnol já renderam até uma indenização, custeada pela União. Independentemente de Mendes ter ou não a intenção de usar a brincadeira de Moro para resolver essas “divergências”, o que é realmente inaceitável é que a PGR se preste ao papel de perseguidora por meio de uma denúncia completamente inepta, que erra na forma, erra no conteúdo e erra ao pleitear até mesmo uma perda de mandato, de forma completamente desproporcional ao delito supostamente cometido. O órgão se junta, assim, ao vale-tudo em que princípios jurídicos e até garantias constitucionais são atropelados quando se trata de apagar os resultados da Lava Jato e prejudicar os que a conduziram, fazendo deles exemplos do que acontece a quem tenta combater a corrupção no Brasil.

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