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O recente embate entre o presidente Lula e o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, é a demonstração do provérbio “farinha pouca, meu pirão primeiro” – no caso, a farinha é o total escasso de recursos disponíveis no Orçamento da União, disputado entre os parlamentares, por meio de emendas dos mais diversos tipos, e o governo federal, que gostaria de empregar o dinheiro naquilo que considera prioritário. “O orçamento é de todos e de todas os brasileiros e brasileiras. Não é e não pode ser de autoria exclusiva do Executivo”, disse Lira em 5 de fevereiro, na reabertura dos trabalhos legislativos. A afirmação foi lida como recado direto ao presidente da República, que no fim de janeiro havia sancionado o Orçamento com um veto a R$ 5,6 bilhões em emendas de comissão, além de também ter vetado o calendário de pagamento das demais emendas.
Os orçamentos federais, independentemente da orientação ideológica do governo de turno, sofrem de um problema clássico: um enorme engessamento que “carimba” a grande maioria do dinheiro que sobra depois que o governo paga rubricas como salários, aposentadorias e juros da dívida. É o caso, por exemplo, dos mínimos constitucionais referentes à saúde e educação, e de outras obrigações que, como já explicamos no passado, são a forma como o orçamento reflete o fato de vivermos em uma “sociedade da desconfiança”, pois parte-se do pressuposto (às vezes justificado, é bem verdade) segundo o qual, se não houver mínimos obrigatórios ou indexadores, os gestores deixarão certos setores à míngua ou não aplicarão as correções necessárias nos investimentos.
Não faz o menor sentido que o governo eleito praticamente não tenha dinheiro para levar adiante seus projetos e investir naquilo que ele considera serem as prioridades do país
E, de tantas obrigações, vinculações e indexações, a fatia do orçamento que sobrou para o governo – repetimos: qualquer governo, de esquerda, de direita ou de centro – aplicar como julga necessário é ínfima. E mesmo sobre esta sobra o Legislativo vem avançando com voracidade cada vez maior. Um levantamento feito pelo jornal O Globo mostra que, em 2024, o Congresso definirá o destino de 20% dos recursos livres do orçamento, ou seja, aqueles que não têm destino definido por obrigação constitucional ou alguma outra das regras engessadoras. Esse porcentual já foi maior, chegando a 28,6% no Orçamento da União de 2020, mas dez anos atrás ele era de apenas 4,65%. A fome dos parlamentares deu um salto a partir do uso indiscriminado das emendas de relator, que tinham um objetivo bem específico, de caráter técnico, mas passaram a ser usadas para abocanhar fatias cada vez maiores do orçamento. Ainda que o STF tenha restaurado a função inicial dessas emendas, o Congresso jamais desistiu de seguir determinando o destino de porções significativas dos recursos federais.
Tamanha ingerência do Legislativo sobre a elaboração do orçamento é algo tipicamente brasileiro. Em 2022, o economista Marcos Mendes pesquisou qual a parcela dos gastos livres sobre os quais o parlamento tinha poder de decisão nos países da OCDE. O único país que se aproximava do Brasil era a Estônia, com 12,1%. Depois vinha a Eslováquia (5,5%) e os Estados Unidos (2,4%). Em outros países, como Portugal, Coreia do Sul e França, a porcentagem era inferior a 1%. Além disso, são raríssimos os países em que parlamentares podem apontar destinos bem específicos para os recursos, como acontece no Brasil; na maioria, o Legislativo pode apenas fazer alterações de caráter mais genérico, por exemplo tirando recursos de uma rubrica e remanejando-os para outra, mas ainda é o Executivo quem decide como os valores serão efetivamente usados.
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Esse tipo de “sequestro” do orçamento pelo Legislativo acaba enfraquecendo um aspecto crucial da democracia. Quando vota em um presidente da República, o eleitor também está endossando a plataforma que o candidato está propondo; goste-se ou não desta plataforma, não faz o menor sentido que o governo eleito praticamente não tenha dinheiro para levar adiante seus projetos e investir naquilo que ele considera serem as prioridades do país. Este mal, ressaltamos, não enxerga ideologia: hoje é um governo de esquerda que briga por recursos, mas também Jair Bolsonaro viu o Congresso tomar para si recursos cuja destinação cabia ao Executivo decidir; se nada mudar, um eventual futuro governo de direita terá o mesmo problema. Não se trata de acabar com as emendas parlamentares, mas de repensar seu funcionamento e suas dimensões.



