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O urbanismo tem dessas coisas. Há dois anos, a prefeitura de Curitiba fez grande barulho ao promover a revitalização da Rua Riachuelo. Firmou parcerias com o Sebrae, mobilizou a sociedade, pegou carona na Virada Cultural – que levou espetáculos para a região. Anunciou-se um novo tempo para a via tida como feia, suja e malvada.

Como se sabe, não se recria o mundo em seis dias, tampouco uma rua. O poder público fez só metade da lição de casa; poderia ter insistido mais no projeto. A Riachuelo tem iluminação e calçamento melhor – grandes ganhos –, mas continua com cara de mal-dormida. Ficou na promessa o aterramento da fiação, obra que permitiria ver o dicionário arquitetônico desse que é um dos pontos mais antigos da cidade. A crise econômica se encarregou do resto. As lojas de móveis vendem mobília descartável. A tradicional Casa Hilú baixou as portas.

Em contrapartida à revitalização estagnada da Riachuelo, uma das suas transversais, a Rua São Francisco, saiu das sombras. Mirou no peixe, acertou no gato. Tornou-se uma das novidades de 2015, o ano em que uma área degradada do Centro virou notícia. Os alternativos se instalaram no comércio e, mais do que isso, o frequentam, diuturnamente, como se não houvesse amanhã. Não chega a ser uma “24 horas” – a exemplo das que existem em muitas cidades de porte –, mas tudo indica que não conhece tempo ruim.

Não basta pedir o espaço público, tem de fincar os pés nele, para que de fato exista

Observar os bons ventos da São Francisco, por essas, é uma boa pedida. Efeito Riachuelo? É uma hipótese. Opção da prefeitura por ações de médio prazo? Outra. Some-se à lista a iniciativa cidadã. Dentre as tantas razões que provocaram essa revitalização a jato (e que, até que se prove o contrário, não foi programada), uma atende pelo nome de Praça de Bolso do Ciclista. O poder municipal ajudou, mas foi a persistência dos jovens bicicleteiros, que ocuparam aquele ponto detonado da esquina da São Francisco com a Presidente Faria, a garantia de êxito da micropraça. Eles não só a instalaram: eles a frequentaram, fazendo aquele exercício urbano que cabe a nós todos. Não basta pedir o espaço público, tem de fincar os pés nele, para que de fato exista. Em tempo, vale lembrar que a pracinha que reinventou a São Francisco nasceu de um corredorzinho onde foi instalada a Bicicletaria Cultural – espécie de QG da turma da bike. Palmas para todos os que perceberam que pequenas iniciativas são como água mole em pedra dura.

Em reportagem da Gazeta do Povo publicada em 26 de setembro, mostrou-se que a São Francisco não é, assim, um mar de rosas. Professores do Centro de Educação de Jovens e Adultos Poty Lazzarotto reclamam do uso de drogas – sem cerimônia – na região. Batidas policiais são constantes. E está longe de ser um case para a ONU a convivência entre jovens da periferia – atraídos pela liberalidade da São Francisco – e jovens descolados, que procuram em Curitiba modelos de ocupação urbana que experimentaram, talvez, em Amsterdã ou Nova York. O clima Woodstock flerta com o Oriente Médio.

O mais sóbrio dos urbanismos indica que tudo é uma questão de tempo. Logo se há de saber se a rua de paralelepípedos que corta a Riachuelo é só moda. A insustentável leveza do ser que move as classes médias pode levá-la a ser trocada por um outro local do momento. Nesse cenário, restariam os cicloativistas – cujas ligações com a região se mostram sólidas – e os que se nutrem do abandono do Centro Velho. Mas pode acontecer que as tribos demarquem seus territórios – a exemplo do que acontece no Parque Barigui – e que os próprios frequentadores regulem, sem uso da mão pesada, alguns limites, sob ameaça de escolherem outro lugar para beber e conversar.

A região do porto, em Santos, e a da Lapa, no Rio de Janeiro, passaram por processos semelhantes. Provaram da acupuntura dos gestores urbanos, caíram no gosto da mocidade, saíram da zona do rebaixamento. Depois disso, encontraram seus próprios caminhos, solucionando impasses. É provável que a Rua São Francisco siga a mesma rota. Mais do que isso – é importante que siga.

Um dos dilemas das grandes cidades é conter o abandono e a violência. Demãos de tinta, lâmpadas, melhoras nas ligações urbanas, tudo ajuda. Mas sobretudo o que conta é que esses lugares se tornem espaços de afeto para a população. É preciso que o povo goste de pisar naquelas calçadas, que sinta desejo de desviar sua rota até ali, vivendo de fato a delícia do ser urbano. É isso ou o nada.

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