Diz a Constituição, no caput de seu artigo 53, que “os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. A chamada “imunidade material” dos parlamentares sempre foi entendida como um princípio fundamental para a atividade política e a busca do bem comum, por exemplo como meio de evitar perseguições e retaliações de cunho político. Mas seu alcance se tornou objeto de discussão depois da decisão do Supremo Tribunal Federal que tornou réu o deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ) por injúria e apologia ao crime.

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A queixa-crime foi oferecida ao STF pela deputada Maria do Rosário (PT-RS). As desavenças entre ambos vêm desde 2003 – na ocasião, registrada em vídeo, Bolsonaro dava entrevista a um canal de televisão, defendendo a redução da maioridade penal, quando foi interrompido por Maria do Rosário, contrária à medida. A deputada disse que Bolsonaro promovia o estupro, ao que ele respondeu com a frase “jamais iria estuprar você, porque você não merece”. Em dezembro de 2014, Bolsonaro ocupou a tribuna da Câmara logo após Maria do Rosário, que tinha feito um discurso com críticas à ditadura militar. Ao ver que a deputada estava deixando o plenário, Bolsonaro disse: “Fica aí, Maria do Rosário, fica. Há poucos dias, você me chamou de estuprador, no Salão Verde, e eu falei que não ia estuprar você porque você não merece” (apesar da expressão “há poucos dias”, o deputado se referia ao episódio de 2003). Foi essa frase, repetida por Bolsonaro em entrevistas, que levou à queixa-crime e à denúncia da Procuradoria-Geral da República, aceitas pela Primeira Turma do STF.

Quando o STF decidiu processar Bolsonaro, abriu um precedente perigoso

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Não há a menor dúvida de que são declarações deploráveis, merecedoras de todo o repúdio. A questão que se lança aqui não é a gravidade das palavras de Bolsonaro, mas qual o foro adequado para lidar com tais situações. Desde já é possível afirmar que caberia representação ao Conselho de Ética da Câmara – como, aliás, foi feito logo após o discurso de 2014; o processo se extinguiu com a mudança de legislatura, mas nada impede que se repetisse o procedimento, pois o próprio STF tem jurisprudência segundo a qual um parlamentar pode ser punido por atos de mandatos anteriores. Além disso, a rejeição da população poderia se manifestar em futuras votações de Bolsonaro, que pretende disputar a Presidência em 2018.

Quando o STF decidiu processar Bolsonaro, no entanto, abriu um precedente perigoso. Não por causa do grave conteúdo das palavras do deputado, mas por relativizar uma imunidade que deveria ser preservada, sem admitir exceções. O ministro Celso de Mello (que não faz parte da Primeira Turma) já havia explicado o alcance da imunidade parlamentar em 2005, como relator do Agravo de Instrumento 473.092. Jurisprudência e doutrina, afirma, estipulam que abusos de parlamentares sejam julgados por seus pares e que a imunidade transcende a casa legislativa. Mello cita Rosah Russomano de Mendonça Lima: “Se o congressista ocupar a tribuna, diga o que disser, profira as palavras que proferir, atinja a quem atingir, a imunidade o resguarda. Acompanha-o nos instantes decisivos das votações. Segue-o durante o trabalho árduo das comissões e em todas as tarefas parlamentares, dentro do edifício legislativo. Transpõe, mesmo, os limites do Congresso e permanece, intangível, a seu lado, quando se trata do desempenho de atribuições pertinentes ao exercício do mandato”.

Luiz Fux, relator da denúncia contra Bolsonaro, afirmou que “o conteúdo não guarda qualquer relação com a função de deputado, portanto não incide a imunidade prevista na Constituição”. Considerando-se, no entanto, que Bolsonaro fez seus ataques usando a tribuna da Câmara, em um contexto de disputa político-ideológica, não há dúvida de que estava protegido pela imunidade parlamentar. O caso do qual Celso de Mello foi relator, inclusive, guarda semelhanças com o de Bolsonaro, pois a denúncia incluía entrevistas do denunciado, um deputado do Acre. Mello entendeu que, como as declarações à imprensa repetiam ou repercutiam as falas anteriores, também estariam cobertas pela imunidade.

Marco Aurélio Mello, único a votar contra a abertura do processo de Bolsonaro, disse ser “lastimável o STF perder tempo apreciando tal situação jurídica”. A perda de tempo é o de menos; o que realmente preocupa é o surgimento de uma tendência de relativização de garantias necessárias para a democracia.

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