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Uma reforma partidária corajosa tornaria a criação de partidos tão simples quanto a abertura de uma empresa – mas também corrigiria os privilégios dados às legendas registradas

O sistema partidário brasileiro sofre de uma inversão perversa: para se criar uma legenda há uma série de exigências e dificuldades. Mas, uma vez superadas, o simples fato de existir já dá ao partido uma generosa participação no butim do Fundo Partidário e do tempo de rádio e televisão, tudo custeado pelo contribuinte brasileiro. Essa distorção já foi apontada pela Gazeta do Povo em 5 de outubro, quando comentamos, em editorial, a criação do Partido Republicano da Ordem Social (Pros) e do Solidariedade, quase ao mesmo tempo em que era rejeitado o registro da Rede Sustentabilidade, de Marina Silva. O mecanismo atual precisa ser virado do avesso, e já existem algumas iniciativas nesse sentido. Uma reforma partidária bem feita precisa atacar dois temas principais, que pretendemos abordar hoje e amanhã: as regras para a criação de partidos e os mecanismos que privilegiem apenas as legendas que efetivamente se mostram representativas de pelo menos uma parcela da população.

A liberdade de associação, uma garantia democrática, deveria ser um dos pilares da legislação que rege a criação de partidos no Brasil. Mas não é o que ocorre atualmente. O artigo 17 da Constituição, logo após declarar que "é livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana", acrescenta a ressalva "observados os seguintes preceitos", referindo-se à sua regulamentação – no caso, a Lei 9.096/1995, que faz uma série de exigências aos criadores de legendas, das quais a mais conhecida é "o apoiamento de eleitores correspondente a, pelo menos, meio por cento dos votos dados na última eleição geral para a Câmara dos Deputados, não computados os votos em branco e os nulos, distribuídos por um terço, ou mais, dos estados, com um mínimo de um décimo por cento do eleitorado que haja votado em cada um deles". Em outras palavras, trata-se do recolhimento de assinaturas, justamente o calcanhar de Aquiles da Rede Sustentabilidade. No país da urna eletrônica, a caça às assinaturas para abrir um partido ainda é um processo manual, sujeito a fraudes por parte de quem as coleta e de arbitrariedades por parte de quem as recebe (militantes da Rede, é bom lembrar, alegam que em redutos petistas o índice de rejeição de assinaturas pelos cartórios eleitorais foi muito maior que a média brasileira).

Por que se exige dos fundadores de partidos o endosso de quase meio milhão de eleitores? Por que não bastaria o respeito à soberania nacional, à democracia, ao pluripartidarismo e aos direitos fundamentais para que um grupo de pessoas com os mesmos ideais pudesse criar um partido e colocá-lo em funcionamento? Uma reforma partidária corajosa tornaria a criação de partidos tão simples quanto a abertura de uma empresa, sem maiores exigências que as já descritas acima e outras presentes no Artigo 17 da Constituição, como a prestação de contas periódica.

No entanto, não há nada no horizonte político brasileiro que permita sonhar com tal solução. O máximo a que se chegou até agora é a proposta aprovada pelo grupo de trabalho da Câmara que cuida da reforma política: reduzir pela metade, de 0,5% para 0,25%, o número de assinaturas necessárias para a obtenção do registro partidário. Se já estivesse em vigor, a redução do número obrigatório de assinaturas já teria beneficiado a Rede de Marina Silva, além de outras entidades que já começaram o recolhimento de assinaturas, mas que não tinham as eleições de 2014 no radar – caso do Partido Novo, de ideologia liberal, e dos Libertários. Trata-se de um avanço, mas que mesmo assim não demonstra um respeito pleno à liberdade de associação. A nova regra, junto com várias outras (a comissão ainda está analisando as questões do financiamento público de campanha e do sistema eleitoral), deve formar uma Proposta de Emenda à Constituição que será entregue ao Congresso nas próximas semanas.

Logicamente, o relaxamento nas exigências para a criação de partidos não poderia, em hipótese alguma, ser aprovado isoladamente, pois, como dissemos no início, existe toda uma série de benesses à disposição dos partidos brasileiros, a que eles têm direito pelo simples fato de existir. Sem outras mudanças, o que haveria seria a profusão incontrolável de legendas clientelistas, em escala muito maior que a já verificada atualmente. Como explicaremos amanhã, é preciso haver um aperto em outras regras, de forma a dificultar a sobrevivência de partidos fisiológicos que não encontram endosso no eleitorado.

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