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O ano de 2009 termina ao som de "Noite Feliz" e alalaôs carnavalescos antes da hora. Pudera: sobreviveu-se às marolas da crise mundial, à inclemência da Gripe A (H1N1), o país cresceu um cadinho no segundo semestre e nosso presidente – que nem levou o Nobel da Paz nem nada – foi uma das poucas autoridades aplaudidas na Conferência Mundial do Clima, a COP15, em Copenhague. Tamanho banho de estima teve o efeito revigorador de um Biotônico Fontoura. Será um réveillon de cabeças erguidas, como há muito não se via.

Mas tem quem não se deixe levar pela corrente pra frente dos últimos meses, ciente de que euforia desmedida traz o perigo de cegar. Quem cantou a bola foi o historiador José Murilo de Carvalho, em entrevista recente à imprensa, ao lembrar que uma democracia não se consolida apenas com crescimento econômico e inclusão social, como quer fazer crer o atual governo. Sem a afirmação de valores como a honestidade e o civismo – parodiando o livro mais famoso de Ignácio de Loyola Brandão – "não verás país nenhum".

A democracia sem ética é frágil como uma donzela romântica, torturada pelos espartilhos. De repente, desfalece, antes mesmo do final feliz. E a maior prova de que a donzela está quase a sufocar é que, via de regra, em pesquisa de opinião, a população associa política a roubalheira e impunidade. O pior dos mundos. Melhor repetir: se assim for, "não verás país nenhum".

O menosprezo pelos efeitos culturais e sociais da corrupção se tornou uma marca de nascença da sociedade brasileira. Não vem de hoje. Como diz a psicóloga social Sandra Jovchelovitch, professora da London School of Economics, no Reino Unido, a corrupção habita os lugares mais profundos do imaginário nacional. E a tal ponto que o brasileiro médio considera o caso perdido: somos desonestos até a medula. Faz parte de nosso corpo político.

Não procede.

Infelizmente, a tese do "mal de raiz" ganhou impulso no governo Lula. Havia grandes esperanças em torno do homem de Garanhuns. "Nunca antes", como ele tanto gosta de repetir, um presidente carregou na corcunda tantas expectativas. Via-se nele a oportunidade de a Nação fazer as pazes. Não aconteceu. Restou arrumar um simulacro para a decepção.

Mas eis um problema que o Bolsa Família e congêneres não resolvem. Os programas são o saneamento de uma dívida social, um curativo, irmanam o país, mas não geram um novo pacto nacional. Lembrar essa verdade inconveniente causa engulhos nos dirigentes. Só que remoer é preciso.

Do contrário, vai vigorar nessas terras do Cruzeiro do Sul, pelos séculos dos séculos, um maquiavelismo cara de pau. Pode roubar, desde que não falte na mesa do povo. É o fim e o meio. A versão tupiniquim de O príncipe já faz escola. Começa com o caso Wal­­domiro Diniz, em 2004, e corre feito uma sangria, passando pelo mensalão e pela proteção a José Sarney. Nesses e em outros casos, colocou-se compressas mornas sobre a crise, defendendo-se que ganhos na economia e na redução da pobreza são o bastante para que se dê um desconto à ética.

Ora, é como perdoar o adultério porque o amante colocou comida na despensa e pagou merenda das crianças. Depois resta dar tapinhas às costas, dizer "deixe-disso" e se contentar com uma vida de migalhas. Ledo engano: a cada vista-grossa que se faz, mais os brasileiros se tornam inimigos íntimos, sujeitos, novamente, à farsa da cordialidade. "Não verás país nenhum". Ou se hasteia a bandeira da ética ou "necas".

Cá entre nós, não se trata de chegar às raias de 2010 acreditando, tolamente, que o presidente Lula e seus assessores podem e devem fazer arremates na ética nacional. Torce-se para que o chefe empregue na lisura política o mesmo esforço dedicado aos programas sociais. Mas há algo em meio aos votos de ano-novo que cabe ao cidadão. Que esse pensamento nos valha.

Não se trata aqui de pregar a "moral de quintal", na linha do "faça sua parte", "lave sua calçada" e "cuide da sua vida", esquecendo-se que essas máximas populares nascem de um individualismo disfarçado. Elas podem muito bem alimentar uma roda de conversa no muro ou um depoimento na igreja, mas não abalam o chão. Para ser um país é preciso ser e estar coletivamente. Eis a parte que nos cabe em 2010.

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