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Indígenas acompanham sessão do STF que definiu as teses sobre marco temporal e terras indígenas, em 27 de setembro de 2023.
Indígenas acompanham sessão do STF que definiu as teses sobre o marco temporal, em 27 de setembro.| Foto: Carlos Moura/SCO/STF

Ao reverter decisões anteriores ou colocar em prática o ativismo judicial, tomando para si funções que são do Legislativo ou do Executivo, o Supremo Tribunal Federal já causa automaticamente insegurança jurídica, pois nunca se sabe ao certo até quando valerá determinada lei, política pública ou até mesmo decisão anterior do STF. Mas à insegurança jurídica somam-se, em certos casos, outros tipos de insegurança, como a tributária, a partir do momento em que a corte aboliu o respeito à coisa julgada em um caso envolvendo a cobrança da CSLL. Mais recentemente, ao derrubar o marco temporal para demarcação de terras indígenas, a corte criou mais um tipo de insegurança, a fundiária, já que a tese estabelecida pelo STF deixa abertas as portas para uma reconfiguração geral no campo.

O artigo 231 afirma, no caput, que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” – o uso do verbo “ocupar” no presente do indicativo apontava para o dia da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988, como o momento definidor para a resolução de questões relativas à posse de terras (daí a expressão “marco temporal”), e em 2009, no célebre julgamento sobre a demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, o Supremo confirmou esse entendimento. Quase uma década e meia depois, o STF reverteu o que havia decidido, e a tese fixada em 27 de setembro afirma que “a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 5 de outubro de 1988 ou da configuração do renitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição”.

A solução encontrada pelo Legislativo restaura a segurança fundiária ao mesmo tempo em que reconhece a existência de casos em que indígenas foram violentamente retirados de terras que são suas por direito

Em entrevista coletiva concedida em 29 de setembro, o novo presidente do STF, Luís Roberto Barroso, deu sua interpretação da decisão da corte: “se em 1988 uma determinada comunidade indígena não estivesse ocupando uma área porque dali foi expulsa injustamente, mas continuou reivindicando a área, o marco temporal não se aplicaria. Se ele tivesse saído de lá e não tivesse voltado mais, não poderia um belo dia aparecer e reivindicar aquela área”, afirmou. No entanto, a tese fixada pela corte vai além. Seu item V prevê, sim, a possibilidade de retirada de proprietários que tenham adquirido ou ocupado de boa fé “terras de ocupação tradicional indígena”, ainda que os índios já não estivessem nelas, nem as estivessem reivindicando judicialmente – a diferença é que, neste caso, haveria indenização ao proprietário removido. Não é difícil imaginar o enorme potencial de desestabilização no campo derivado da aplicação da tese, com a possibilidade de reivindicação de inúmeras propriedades.

O Congresso, no entanto, reagiu e aprovou, no mesmo dia em que o STF publicava sua tese, um projeto de lei que regulamenta o artigo 231 da Carta Magna. O texto, que já tinha sido aprovado na Câmara, passou pelo Senado com o voto de 43 parlamentares. Seu artigo 4.º menciona explicitamente a “data de promulgação da Constituição Federal”, mas o parágrafo 2.º abre uma exceção ao dizer que o marco temporal não se aplica em caso de “renitente esbulho devidamente comprovado”, definido no parágrafo seguinte como “o efetivo conflito possessório, iniciado no passado e persistente até o marco demarcatório temporal da data de promulgação da Constituição Federal, materializado por circunstâncias de fato ou por controvérsia possessória judicializada”. Em outras palavras, aquilo que Barroso afirmou em sua entrevista se reflete muito mais no projeto de lei aprovado pelo Congresso que na tese fixada no Supremo.

Até por isso, espera-se que desta vez a corte, que fatalmente será provocada caso o texto seja sancionado integralmente pelo presidente Lula, ou caso eventuais vetos presidenciais sejam posteriormente derrubados, respeite a soberania do parlamento na regulamentação do que está previsto na Constituição. A solução encontrada pelo Legislativo restaura a segurança fundiária ao mesmo tempo em que reconhece a existência de casos em que indígenas foram violentamente retirados de terras que são suas por direito, conflitos estes que cabe exatamente ao Judiciário solucionar. Não há nada de identitarismo woke em reconhecer que por muito tempo o Brasil tratou mal seus primeiros habitantes; mas o respeito aos indígenas não é incompatível com a preservação de outros direitos dos não indígenas, incluindo o direito de propriedade.

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