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Prefeitura e Associação Comercial do Paraná iniciam projeto para conter pichação na cidade. Era esperado. Mas que venha acompanhado da participação popular

Curitiba está pichada, de alto a baixo, da esquerda para a direita. O spray atingiu lugares e alturas inimagináveis. Beira a perplexidade e a pergunta "eram os deuses astronautas?", numa comparação bem-humorada entre a pichação e os feitos inexplicáveis descritos por Erick von Daniken. Pode-se achar até curioso, mas em miúdos não é assunto para piadas de salão. Mais que arte urbana, expressão ou desobediência civil, pichação é crime contra o patrimônio.

Contudo, diferentemente de outros grupos similares – como coletivos de artistas ou crews de grafiteiros –, os pichadores não se dão a conhecer. Nutrem-se do anonimato e da agressão, o que deixa na defensiva o povo já cansado de guerra, que assiste a tudo, sem mais. Pichadores não angariam simpatias. O máximo de cumplicidade que conseguem é o silêncio, mesmo quando por sorte tenham deixado no muro um inofensivo haicai.

O preço do lugar marginal ocupado pelos pichadores – fora do qual não conseguem existir – é que o assunto mexe com os nervos e com o juízo da população. Pudera. Impossível não sentir desalento ao constatar que em uma rua como a Nilo Peçanha, para citar uma via da Curitiba "algo mítica", não se acha muro sequer que não tenha sido atingido pelos sprays.

"A Coca-Cola pode? Por que não nós?", defendem-se os autores nas poucas vezes em que se dão a conhecer, repetindo como uma reza seu libelo anti-imperialista. A questão não se resume a uma mera oposição maniqueísta entre os direitos da publicidade e da livre expressão. Questionar os direitos ilimitados dos banners, logos e quetais usados pelas empresas, em todo e qualquer lugar, não dá licença a ninguém de esgotar a paciência e as finanças dos donos dos muros, obrigados a custear a indignação alheia com infinitas demãos de tinta.

Além disso, não se deve esquecer de que não estamos mais nos anos 1960 – quando pichar "abaixo a ditadura" e "a imaginação no poder" era palavra de ordem. Ou em meio ao pós-tudo dos anos 1980, quando o muro despontava como o único espaço possível de oxigenação intelectual e pichar servia para suavizar os tons de cinza de uma época que lutara tanto e se via, de repente, sem alternativas. A pichação, em miúdos, esvaziou seu caráter político, contestatório ou filosófico, salvo as exceções em que se traveste de estêncil e esbanja alguma poesia, capaz de interferir na rotina dos moradores da cidade. Na maior parte das vezes, o passante se vê diante de um código secreto do qual não pode participar. É grego. É russo. É sânscrito. Absorve a pichação no que ela tem de pior – invasão, incomunicabilidade, abuso, descaso. Seu efeito é tão nefasto quanto um tiroteio. A violência é miúda.

Quem afirmou a miudeza foi a política da "tolerância zero" propagada, não sem opositores, pelo ex-prefeito de Nova York Rudolf Giuliani. A urina no muro, o lixo jogado na rua, a janela quebrada, o som alto e a pichação seriam a rádio-escuta do homicídio, do latrocínio, do tráfico, da ação das gangues. Ao coibir as pequenas transgressões, atacava-se pela raiz os grandes delitos que se nutrem delas. Não é verdade incontestável que a lógica da violência seja essa, mas não se pode negar que a tática aplicada nos Estados Unidos confirmou que a cultura da paz começa pelas garantias mínimas de convivência social. Hospitalidade é a palavra diplomática da hora. "Viver junto", o desafio do mundo moderno. A pichação atenta contra essas possibilidades.

Transformar a cidade numa grande e infinita caderneta, como defendem os pichadores no documentário Pixo, de João Weiner, equivale a dizer que só a escrita que eles fazem é válida. Ora, assim praticam o mesmo autoritarismo que condenam. A ação prometida pela prefeitura de Curitiba e Associação Comercial do Paraná vem com a promessa de restituir a ordem democrática, mas só dará certo se toda a população se envolver.

A ovação popular com que o projeto foi recebido mostra o estado de recalque em que nos encontrávamos. Quem haveria de conter os pichadores? Em sua campanha, o prefeito Gustavo Fruet chegou a afirmar que a pichação descontrolada era resultado da ausência do Estado. E ninguém se arrisca em espaços abandonados, sem regra e sem lei. Ao anunciar que vai coibir os sprays, Fruet pichou a frase esperada. Alguém precisava falar mais alto, para que a conversa sobre o uso da cidade pudesse recomeçar. Eis o ponto em que estamos.

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