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Ao contrário do que dizem as concepções mais pobres de democracia, que a resumem à simples realização periódica de eleições, um país só pode se considerar plenamente democrático quando estão cumpridos inúmeros outros requisitos. Eles incluem uma série de garantias, direitos e princípios, como a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, a imunidade parlamentar, o respeito ao devido processo legal, o direito à ampla defesa, a individualização da conduta (uma pessoa só pode ser punida pelo que efetivamente fez), ou a intransmissibilidade da pena (ninguém, além do réu ou condenado, deve pagar pelo que ele fez) – e esta é apenas parte de uma lista bem mais extensa.
Muitos desses direitos, princípios e garantias são conquistas civilizatórias de séculos, a começar pena Magna Carta inglesa, de 1215, passando por tratados internacionais e por clássicos do Direito até hoje estudados nas universidades como exemplos da melhor doutrina jurídica. E, em nações com sólida cultura democrática, a mera tentativa de relativizar ou mesmo de abolir qualquer um desses direitos, princípios e garantias seria recebida com rechaço firme de toda a sociedade. Com entidades de classe e formadores de opinião à frente, o país inteiro se levantaria contra a menor possibilidade de a democracia ceder um milímetro sequer ao arbítrio.
Os desmandos e arbítrios recentes foram tolerados, quando não incentivados e aplaudidos, porque eram dirigidos contra um único lado do espectro político-ideológico nacional
Não tem sido esse, no entanto, o caso do Brasil. Ao menos desde 2019, ano de instauração do inquérito das fake news, vários órgãos do poder público, com o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral à frente, avançaram vorazmente sobre as liberdades dos brasileiros encontrando resistência mínima. Cada um dos itens listados mais acima já foi solapado: os processos do 8 de janeiro acabaram com a individualização da conduta e com o direito à ampla defesa, já que, em julgamentos virtuais, advogados precisam enviar a defesa de seus clientes em vídeos que talvez jamais sejam vistos; o caso recente de Carla Zambelli, em que mãe e filho da deputada foram censurados, representou o fim da intransmissibilidade da pena; e da liberdade de expressão nem se fala, vítima que é de um apagão que já dura anos.
Nenhum autocrata se impõe afirmando que busca o poder total para si; ele quase sempre alega estar agindo excepcionalmente para “defender a democracia” de alguma ameaça – mesmo um “comunista raiz” jamais diria que seu plano é o de implantar a ditadura própria (como acaba ocorrendo), mas aquela “do proletariado”. Como bem lembrou o colunista Alexandre Garcia em texto recente, até mesmo os considerandos do AI-5 falavam em assegurar a “autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana”. Isso jamais nos impediu de chamar aquele regime pelo que era: uma ditadura.
Por que, então, a sociedade brasileira (com algumas poucas exceções) não foi, nem é capaz de denunciar os atuais desmandos com o mesmo vigor? Como aceitamos que uma ministra do TSE alegasse uma “situação excepcionalíssima” para, em 2022, ordenar a censura de um documentário cujo conteúdo ela nem sequer conhecia? Por que aceitamos que uma cabeleireira receba penas superiores às de homicidas ou traficantes de drogas quando o único ato que pode indubitavelmente ser-lhe atribuído é o de escrever uma frase com batom em uma estátua? Por que achamos normal que um ministro acumule quase todos os papéis da persecução penal e proíba brasileiros de usarem mídias sociais, imponha-lhes “obrigações de não fazer” sem previsão legal? Como permitimos que uma pessoa fique presa por longos meses sob a alegação de que teria feito uma viagem, quando todas as evidências sempre apontaram para o contrário? E estes são apenas alguns poucos exemplos mais emblemáticos de uma disfunção que tem dimensões muito maiores.
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Normalizou-se tudo isso apenas porque os disparos não vêm de tanques na rua, mas de canetas em gabinetes? Custa-nos crer que seja assim, pois os mesmos que se calam diante dos arbítrios cometidos por aqui são rápidos em apontar outros exemplos de arbítrio cometidos no exterior, mesmo quando não envolvem quarteladas. A realidade é bem mais sombria que um simples caso de ignorância, e demonstra como ainda estamos longe de uma autêntica cultura democrática: tudo foi tolerado, quando não incentivado e aplaudido, porque era dirigido contra um único lado do espectro político-ideológico nacional. Os eventuais crimes que porventura tenham sido cometidos deixaram de ser devidamente investigados e punidos para se dar lugar a uma caça às bruxas na qual todas as exceções foram aceitas em nome da eliminação da “(extrema) direita”, do “conservadorismo”, do “bolsonarismo” ou qualquer outro nome que se dê aos que se opõem ao atual governo e aos desmandos dos tribunais superiores.
Agora, entidades que outrora foram baluartes na defesa da democracia estão acovardadas e criou-se uma “espiral do silêncio” em que todos temem fazer críticas (o que por si só já evidencia a disfuncionalidade atual); humoristas que fazem piadas de péssimo gosto recebem não o repúdio do público, mas a prisão; jornalistas são condenados por “excesso de ironia” em relação a uma autoridade; cidadãos comuns têm a Polícia Federal em seu encalço por praticar o esporte nacional de chamar um político de “ladrão”. Para muitos que passaram anos normalizando e até elogiando o arbítrio, foi preciso chegarmos a esse ponto para haver um tímido despertar e algumas reclamações. Ainda há quem diga, muito ingenuamente, que os excessos podem ter sido justificáveis até pouco tempo atrás, mas que agora é hora da autocontenção. Ocorre que nenhum gênio volta para a garrafa tão facilmente. A liberdade no Brasil morreu “com um aplauso estrondoso”, para recorrer a uma famosa fala do episódio III da saga Star Wars, e ressuscitá-la exigirá um clamor público muito maior que tudo o que temos visto até agora.



