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A maioria dos ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, nesta sexta-feira (25), condenar a cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos, que pichou a estátua da Justiça com batom, a pelo menos 11 anos de prisão, consolidando mais um capítulo na triste lista de violações às regras penais e processuais que vêm ocorrendo nos julgamentos envolvendo o 8 de janeiro.
O ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, já havia votado, em 21 de março, pela condenação da cabeleireira a 14 anos de prisão pelos crimes de associação criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, deterioração de patrimônio tombado e dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União – entendimento seguido pelo ministro Flávio Dino e pela ministra Cármen Lúcia.
Ainda que a pena final de Débora Rodrigues não esteja definida, não há outra constatação possível a não ser que a Justiça já não existe mais e, em seu lugar, impera o cruel justiçamento – o que não pode ter lugar em um Estado Democrático
Cristiano Zanin concordou com os argumentos do relator, mas sugeriu pena menor, de 11 anos de prisão. O único voto discordante foi o do ministro Luiz Fux, que, talvez percebendo o absurdo dos crimes imputados a Débora Rodrigues, votou por reduzir a pena a um ano e meio, admitindo apenas o crime previsto no artigo 62, inciso I, da Lei 9.605/98, que trata sobre “destruir, inutilizar ou deteriorar bem especialmente protegido por lei”.
Em seu voto, Fux lembra que Débora Rodrigues confessou a prática delituosa de pichar a estátua com batom, mas que sua conduta foi individual e isolada. “Não há qualquer prova do envolvimento da ré com outros réus, tampouco da sua participação, mínima que seja, nos demais atos praticados nas sedes dos Três Poderes”, afirmou. O magistrado aponta ainda que “não há indício de que a ré tenha adentrado algum dos edifícios, auxiliado outros acusados ou empregado violência contra pessoas ou objetos”, o que contesta a tese de crime multitudinário defendida por Moraes. É uma pena que os demais ministros da corte não demonstrem a mesma sobriedade de Fux.
Nunca é demais lembrar que Débora Rodrigues, uma cabeleireira de 39 anos, mãe de duas crianças pequenas, foi presa no dia 17 de março de 2023 e permaneceu 400 dias em prisão preventiva. Nesse período, o STF negou nove pedidos de sua defesa para a conversão da prisão preventiva em domiciliar – um direito previsto pela jurisprudência do próprio STF – sob o argumento de que haveria “risco concreto à ordem pública”, embora fosse impossível afirmar que perigo seria esse, especialmente quando centenas de outras pessoas na mesma situação de Débora já estavam fora da cadeia.
Débora só pôde voltar para casa após ter a prisão preventiva convertida em prisão domiciliar, em 28 de março deste ano – depois do absurdo voto de Alexandre de Moraes condenando a mulher a 14 anos de prisão, algo absolutamente desproporcional ao que ela de fato fez. E o que Débora Rodrigues fez? Ela estava na Praça dos Três Poderes em meio ao tumulto do 8 de janeiro e escreveu a célebre frase “perdeu, mané” – imortalizada por Luís Roberto Barroso, atual presidente do STF, que a disse em resposta a manifestantes em Nova Iorque, logo após as eleições de 2022. A própria Débora reconheceu o fato e pediu desculpas em uma carta endereçada ao ministro Alexandre de Moraes.
Como bem apontou o ministro Luiz Fux em seu voto, esse é o único crime que pode ser justamente imputado a Débora. Assim como aconteceu em vários casos de condenados pela baderna do 8 de janeiro, a Procuradoria-Geral da República foi incapaz de produzir qualquer evidência de que Débora tivesse cometido – ou mesmo tivesse qualquer ligação com – as gravíssimas acusações que lhe foram atribuídas. Infelizmente, no atual contexto do Judiciário brasileiro, não são mais necessárias provas de que alguém cometeu um crime – ou mesmo da existência de um crime – para que haja uma condenação.
O argumento do “crime multitudinário”, ou de “multidão delinquente”, é usado como uma muleta pelos ministros do STF para eximir a necessidade de a PGR individualizar as condutas dos presos do 8 de janeiro. Isso significa que, mesmo que a cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos não tenha entrado em prédio público e sua participação nos atos de vandalismo tenha se resumido à pichação, com batom, da estátua “A Justiça”, o relator entende que ela deve, sim, ser condenada pelos crimes de associação criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, deterioração de patrimônio tombado e dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União.
É difícil acreditar que, diante de um caso tão absurdo quanto o de Débora, a sociedade, o Congresso e as organizações ainda insistam em seu torpor. Ainda que a pena final de Débora Rodrigues não esteja definida – pois o fim do julgamento virtual (assim como ocorreu com os demais réus do 8 de janeiro, também foi negado a Débora o direito a um julgamento presencial) está marcado para o dia 6 de maio e até lá os ministros podem alterar seus votos –, não há outra constatação possível a não ser que a Justiça já não existe mais e, em seu lugar, impera o cruel justiçamento – o que não pode ter lugar em um Estado Democrático.