Crianças e adolescentes brasileiros crescem e "envelhecem" nos abrigos, sem desfrutarem da oportunidade de serem adotados. Sabe-se dessa manchete. Também é sabido que os casais que se candidatam a adotar seguem um receituário pétreo – querem crianças brancas, saudáveis e com menos de 5 anos de idade, o que, em parte, explica a situação. Há quem queira adotar, quem precise ser adotado, mas essa soma de vontades não resolve o impasse, como seria desejável. E assim prosseguimos, arrastando por décadas um dos maiores impasses da vida brasileira.

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Os dados da adoção foram explorados em série publicada pela Gazeta do Povo, Infância esquecida, do repórter Felippe Aníbal. O Paraná, quinto estado brasileiros com mais abrigados em instituições, tem mais pretendentes à adoção do que crianças e adolescentes em abrigos: 5 mil contra 3 mil. O descompasso tem explicações no mínimo dolorosas. Uma delas diz respeito à cor do adotado. No Sul, a condição de que seja branca chega a 41% dos casos. Não é preciso malabarismos para deduzir que quem está na fila são na maioria negros. Os números, exatos, se tornam um circo de absurdos: o Cadastro Nacional de Adoção diz que 1,2 mil crianças e adolescentes podem ser adotadas, mas esse número não passa de um grito parado no ar.

Há quem pergunte se haverá saída, pois nem o tempo para, deixando a gurizada sempre em chicas e shorts, nem os pais reescrevem seu imaginário sobre a adoção. Hoje tem um abrigado fazendo 6, 10 ou 16 anos. E tem um casal preenchendo formulários nas varas do país, na maior boa vontade, mas desfrutando do seu direito de ajustar a adoção à própria mentalidade. Melhor não atiçar: mesmo em situações ideais, acontecem "devoluções" de crianças, agregando um trauma a mais à vida de quem já carregava traumas de sobra.

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O que se pode dizer é que o mecanismo das adoções pode ser aperfeiçoado. E acelerado, para felicidade geral da nação. Difícil alguém que conheça o setor e não partilhe dessa certeza. Ainda que alegue expedientes técnicos demorados, a Justiça não só pode como deve fazer as devidas e evidentes destituições do poder pátrio, permitindo à criança, em tempo hábil, encontrar um novo lar. Campanhas, claro, sempre as campanhas, se forem contínuas e impertinentes conseguiriam atrair mais pais para a adoção, e pais mais abertos. Pronto?

Todas essas verdades pisadas e repisadas precisam de um ingrediente a mais – políticas públicas que ajudem a maior parte das crianças e adolescentes abrigados a voltar para suas próprias famílias. Durante muito, muito tempo, desacreditar dessa possibilidade era uma questão, digamos, institucionalizada. O próprio sistema de abrigamento se organizou em torno da premissa de que voltar para casa estava fora de questão. Ainda hoje há quem faça expressão de horror ao ouvir que a maior parte dos que vivem em casas-lares não são órfãos, como se quer acreditar, mas vítimas da violência de padrastos ou expurgados pela miséria.

A questão é que as políticas de volta à família são caras demais, demoradas demais, sofisticadas demais. E não se acredita o bastante de que todo esse tempo, dinheiro e empenho valem a pena. Até se botou fé que o sistema dos centros de referência em assistência social, os Cras, diluiria as barreiras, dando forma à viagem de volta para casa. Mas Papai Noel não existe.

Em parte, o Cras teria poder para tanto, mas já se percebeu que a tarefa é mais dura do que a plasticidade do projeto. Sobre o Cras pesam tarefas inúmeras, comunitárias, imediatas, o que impede os centros de dar conta de uma missão tão delicada. A bola está cantada – as práticas de volta à família estão no papel, mas ainda não nasceram. Pedem coragem, determinação e investimentos. Pedem o Cras, e algo mais.

Do contrário, os números continuarão a ser uma tragédia anunciada, como mostrou a série Infância esquecida: apenas em Curitiba, 84% dos aptos à adoção têm mais de 11 anos. Suas chances se reduzem a zero a cada aniversário que completam. Ao complicador da idade, some-se haver ou não irmãos, cor, ser portador do HIV ou alguma outra enfermidade crônica. São estatísticas que incidem diretamente sobre o destino das crianças e jovens brasileiros. E esse é um assunto que não pode mais ficar para depois.

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