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O ministro da Secom, Paulo Pimenta, e o presidente Lula (PT).
O ministro da Secom, Paulo Pimenta, e o presidente Lula (PT).| Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

O “Ministério da Verdade” do governo petista – uma superestrutura que congrega vários ministérios e órgãos do Executivo para vigiar e punir discursos que o governo considere desagradáveis – já está trabalhando com um novo alvo na mira: as críticas à atuação do poder público no socorro às incontáveis vítimas da enchente que atingiu a maior parte do Rio Grande do Sul nos últimos dias. O ministro da Secretaria de Comunicação Social, Paulo Pimenta, foi o responsável por colocar a máquina repressora em funcionamento, afirmando que a Polícia Federal e a Advocacia-Geral da União já estavam agindo para “combater fake news” sobre o resgate de vítimas e o envio de ajuda aos desabrigados.

Um ofício do ministro Pimenta a seu colega Ricardo Lewandowski, titular da pasta da Justiça e Segurança Pública – e que inclui a Polícia Federal – dá perfeita noção do ímpeto censor dos petistas. Entre o que Pimenta descreve como “postagens relevantes” que mereceriam “ações (...) para proteger a integridade e a eficácia de nossas instituições” estão críticas ao número de militares deslocados ao Rio Grande do Sul, considerado pequeno em relação ao tamanho da tragédia e ao efetivo total das corporações, bem como à presença de políticos e da primeira-dama Janja da Silva no show da cantora Madonna enquanto os gaúchos sofriam com a enchente. Pimenta não gostou nada das comparações entre a ajuda estatal e o esforço da sociedade civil na ajuda às vítimas, ao citar no ofício a frase “impressionante como 90% dos vídeos que chegam do Rio Grande do Sul mostram apenas civis ajudando no resgate de vítimas”. Até uma crítica como “o ‘Estado’ como ente centralizador até agora só entregou dificuldade e ineficiência” é considerada merecedora de “providências cabíveis” pelo ministro.

Em uma democracia digna do nome, opiniões como as que o governo agora deseja suprimir jamais estariam sujeitas ao escrutínio estatal, pois representam o exercício puro e simples da liberdade de expressão

Em que democracia do mundo tais afirmações poderiam ser consideradas “narrativas desinformativas e criminosas”, para usar uma frase do ministro logo no primeiro parágrafo de seu ofício? Em que país respeitador da liberdade de expressão uma autoridade pediria que publicações desse teor fossem submetidas a apuração policial? Desde quando tornou-se crime criticar a atuação do Estado, afirmando que ela é lenta ou insuficiente? Ou considerar que certas autoridades deveriam estar próximas às vítimas, em vez de estarem aproveitando um megaespetáculo? Todas essas são opiniões que, em uma democracia digna do nome, jamais estariam sujeitas ao escrutínio estatal, pois representam o exercício puro e simples da liberdade de expressão. Pouco importa se tais opiniões são sensatas ou insensatas, justas ou injustas, corretas ou incorretas: importa apenas que elas estão protegidas pela Constituição e pela lei infraconstitucional, como a lei dos crimes contra o Estado Democrático de Direito, que respeita o direito à “manifestação crítica aos poderes constitucionais”.

Aqui, é preciso recordar uma triste verdade: se um governo tem o despautério de propor um absurdo típico de ditaduras, por meio da repressão policial contra opiniões como as manifestadas acima, é apenas porque, de alguma forma, os ataques à liberdade de expressão foram normalizados ao ponto de Pimenta se achar no direito de fazer o que fez. Nos últimos anos, a sociedade brasileira, com algumas louváveis exceções, dormiu profundamente enquanto uma garantia fundamental protegida constitucionalmente passou a ser destruída pelo Poder Judiciário, ao qual se juntaram o Poder Legislativo (durante a pandemia de Covid) e o Poder Executivo (a partir de 2023). Ironicamente, em nome da “defesa da democracia”, ataques às liberdades democráticas foram tolerados e até aplaudidos, já que eles sempre tinham como alvo o “outro lado”, aqueles de quem se discordava politicamente. E, como já lembramos em outras ocasiões citando o artista espanhol Francisco de Goya, o sono do país produziu o monstro da censura.

Neste sentido, também não há defesa possível para os pedidos de providências contra as poucas afirmações listadas pelo ministro e que poderiam, eventualmente, ser classificadas como fake news: as afirmações factuais sobre os efeitos da enchente e o envio de socorro. É o caso da informação, posteriormente desmentida, sobre mortos em uma UTI de Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre; ou de que caminhões com mantimentos e água estariam sendo barrados por falta de nota fiscal, afirmação feita pelo senador Cleitinho Azevedo.

Diferentemente das opiniões, estas são afirmações cuja veracidade pode ser confirmada ou desmentida; mas, ainda que as informações acabem se revelando falsas, e mais: ainda que tenham sido disseminadas com má-fé, por quem sabia tratar-se de uma mentira, o governo recorre a métodos ilegais para perseguir os responsáveis pelas publicações. Afinal, não existe crime de fake news no ordenamento jurídico brasileiro e, como lembrou o jurista André Marsiglia, constitucionalista especialista em liberdade de expressão, as leis brasileiras como o Marco Civil da Internet já oferecem os meios para se lidar com esse tipo de publicação, dispensando o recurso à força policial; além disso, o governo tem seus canais de comunicação, que pode muito bem usar para restabelecer a verdade em resposta a uma publicação comprovadamente falsa.

A perseguição desejada por Paulo Pimenta não tem relação alguma com a busca pela verdade ou com o bem do povo gaúcho. Trata-se apenas de proteger a reputação de um governo que não tem tolerância alguma para com a crítica

Totalitárias, portanto, a criminalização tanto das opiniões em relação à atuação do governo federal no socorro às vítimas quanto a criminalização de afirmações factuais que porventura sejam falsas. Não há crime, nem ofensa à honra nas publicações, como bem pode atestar qualquer brasileiro minimamente familiarizado com toda a doutrina e a jurisprudência sobre a liberdade de expressão, construídas ao longo de décadas, com base em fundamentos sólidos de respeito à democracia, por mais que haja atualmente quem deseje substituir todo esse arcabouço por decisões repletas de clichês, negritos e exclamações.

No fim das contas, a perseguição desejada por Paulo Pimenta não tem relação alguma com a busca pela verdade ou com o bem do povo gaúcho. Trata-se apenas de proteger a reputação de um governo que tem muitos motivos para ser criticado, mas que não tem tolerância alguma para com a crítica e que deseja, como afirmou Marsiglia, “contar ao povo o que deve pensar a seu respeito”. Só o que importa é apertar ainda mais o garrote em busca do objetivo final, a supressão total de qualquer contestação ao governo, a Lula e ao petismo, nem que para isso seja preciso instrumentalizar a tragédia vivida pelo Rio Grande do Sul. Já passou da hora de a sociedade civil organizada e a opinião pública despertarem deste sono que dura cinco anos. Os despertadores soaram muitas vezes ao longo desse tempo; que a vileza de Pimenta e seu Ministério da Verdade seja o último deles, acordando de vez todos os brasileiros para a importância de preservar a liberdade de expressão.

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