
A imunidade parlamentar é um dos instrumentos democráticos constantemente atacados pelo Supremo Tribunal Federal em nome da tal “defesa da democracia”. A previsão constitucional que torna deputados federais e senadores “invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos” tem sido atropelada pela suprema corte ao menos desde o caso envolvendo Daniel Silveira, com vários outros parlamentares sendo investigados ou processados por declarações, algumas das quais feitas até mesmo na tribuna de sua casa legislativa. No entanto, em vez de proteger essa prerrogativa fundamental para a democracia, os congressistas resolveram ressuscitar um outro instrumento, por meio de uma PEC que em nada resolve o problema atual, e traz de volta outros problemas que se consideravam superados, como o risco de a imunidade parlamentar se transformar em impunidade parlamentar.
A PEC 3/21, ou PEC da Imunidade – que já recebeu vários outros apelidos, dependendo do que se pense dela, como PEC das Prerrogativas ou PEC da Blindagem –, pretende ressuscitar um dispositivo que vigorou entre 1988 e 2001, pelo qual um parlamentar só pode ser processado por crime comum no STF (que é o tribunal com competência para julgar congressistas) se a casa legislativa a que ele pertence autorizar o início do processo. Atualmente, o Senado ou a Câmara só podem derrubar uma prisão em flagrante por crime inafiançável, ou podem suspender temporariamente o andamento de um processo contra parlamentar que responde por crimes cometidos após a diplomação – mas o processo volta a caminhar quando termina o mandato. Na última versão aprovada pela Câmara, os deputados ainda reintroduziram a votação secreta tanto para a manutenção de uma prisão em flagrante quanto para a autorização do início de um processo penal contra parlamentar. Além disso, a PEC ainda estende a prerrogativa de foro para presidentes de partidos políticos, mesmo que eles não tenham mandato parlamentar.
Em vez de proteger a liberdade de expressão de seus membros, o que a Câmara acaba de aprovar e remeter ao Senado deve incentivar a impunidade de parlamentares
A imunidade parlamentar tem dois aspectos: a “imunidade material” e a “imunidade processual”. A imunidade material é aquela do caput do artigo 53 da Carta Magna, a que protege a liberdade do deputado ou senador para se manifestar conforme sua consciência sem medo de retaliações políticas. Ela é absolutamente fundamental para a democracia, e sua relativização – para não dizer abolição – é um dos sintomas da descida autocrática que o Brasil vive. A imunidade processual também tem sua importância ao impedir que processos criminais sejam usados como meio de chantagem política, mas o modelo que vigorou até 2001 foi um abuso dessa prerrogativa, com os congressistas protegendo despudoradamente seus colegas. Casos escandalosos como as blindagens de Hildebrando Pascoal, o “deputado da motosserra”, ou o do ex-senador Ronaldo Cunha Lima, que baleou e matou um adversário político quando era governador da Paraíba, causaram uma reação popular que culminou na Emenda Constitucional 35, alterando a imunidade processual, mas mantendo intacta a imunidade material.
Eis aí o grande problema da PEC 3/21: a imunidade que está sob ataque atualmente é a imunidade material, mas o texto em análise não faz absolutamente nada para incrementar a proteção dos parlamentares por suas opiniões, palavras e votos – o Congresso, aliás, tem sido bastante omisso neste ponto, abrindo mão de ser o contrapeso constitucional aos abusos supremos; recorde-se, por exemplo, que a Câmara deu seu aval à prisão de Daniel Silveira, em 2021. Em vez de proteger a liberdade de expressão de seus membros, o que a Câmara acaba de aprovar e remeter ao Senado tem potencial para trazer de volta o statu quo anterior a 2001, incentivando a impunidade de parlamentares, com a agravante de impedir o eleitor de saber se seu representante contribuiu para essa impunidade, já que as votações serão secretas.
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E que não se argumente que a PEC seria necessária para reverter um cenário em que o STF estaria usando o andamento ou o represamento de processos criminais contra parlamentares para pressioná-los, como forma de chantagem. Para reagir a esse tipo de abuso, há inúmeras outras medidas que a Câmara teria todas as condições de aprovar; e, se há deputados suficientes para mudar a Constituição no caso da PEC 3/21, não deveria ser difícil aprovar outros projetos que estão no Congresso, como o pacote antiativismo judicial, ou limitações a decisões monocráticas do STF, inclusive aquelas que afetam o exercício de mandatos parlamentares. Não é preciso fomentar a blindagem e a impunidade de parlamentares, consertando um erro com outro.
O que a PEC 3/21 faz, no fim das contas, é usar as agressões do Judiciário à imunidade material para reforçar a outra imunidade, a processual. Ela não contribui em absolutamente nada para a restauração da democracia no Brasil. O verdadeiro problema nas relações entre Legislativo e Judiciário está na abolição da liberdade de expressão, inclusive de parlamentares, perseguidos por denunciar a perseguição judicial; não é blindando congressistas envolvidos em escândalos de corrupção (e eles não são poucos) e outros crimes que se resolverá este grave déficit democrático, levando o Supremo à autocontenção tão necessária para tornar possível uma redemocratização do Brasil.



