As recentes altas de juros fazem parte de uma ofensiva do Fed para conter a inflação nos EUA.| Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo
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O mundo foi informado que a economia dos Estados Unidos apresentou, no segundo trimestre deste ano, queda do Produto Interno Bruto (PIB) equivalente à taxa anualizada de 0,9%. Como no primeiro trimestre do ano o encolhimento da atividade econômica havia registrado 1,6%, a retração por dois trimestres consecutivos é considerada desempenho ruim o suficiente para caracterizar recessão técnica. A primeira conclusão dos agentes do mercado e de analistas especializados é que o sinal vermelho vindo dos Estados Unidos pode significar que está se formando uma recessão nos países desenvolvidos, ou no mínimo uma forte desaceleração econômica.

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Essa recessão técnica nos Estados Unidos resulta de fatores que já vinham se pronunciando, de forma que, se houve alguma surpresa quanto à magnitude da retração, a queda no PIB não é de todo surpreendente. A publicação dos maus resultados do PIB norte-americano veio ao lado da elevação na taxa de inflação anual e no aumento da taxa básica de juros pelo Federal Reserve (o banco central dos EUA), e todos esses componentes econômicos estão interligados. Para entender o que está acontecendo com a grande economia norte-americana é necessário prestar atenção em certos aspectos que estão na base dos três males: a inflação, a elevação dos juros e a recessão.

Primeiro, a economia norte-americana funciona baseada em elevado volume de crédito, tanto no lado da produção quanto em relação ao consumo nacional. O sistema produtivo do país é calcado no crédito para investimento e para capital de giro das empresas, de forma que o coeficiente de dinheiro emprestado para financiar a produção e o comércio é proporcionalmente bastante elevado e maior que a média mundial. Embora esse aspecto seja indutor do crescimento empresarial, qualquer elevação na taxa de juros aumenta os custos das empresas, com potencial para reduzir lucros e desestimular a atividade produtiva. Em segundo lugar, a mesma lógica está presente fortemente no consumo nacional, em que a própria cidadania das pessoas é julgada em parte por sua relação com o sistema de crédito, fazendo que a maior parte do consumo seja feita por meio de cartão de crédito e financiamentos bancários.

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A economia norte-americana funciona baseada em elevado volume de crédito. Qualquer elevação na taxa de juros aumenta os custos das empresas, com potencial para reduzir lucros e desestimular a atividade produtiva

Em larga medida, a confiança atribuída a um empregado ou profissional autônomo é afetada pelo crédito a ele concedido pelo mercado financeiro, estampado na posse de cartão de crédito, hipoteca da casa própria e crédito bancário. O volume de compras a crédito nos Estados Unidos é imenso e representa alta porcentagem do consumo nacional; logo, a elevação da taxa de juros afeta negativamente o mercado consumidor. Terceiro, essa mesma lógica se aplica ao governo, conforme revela o tamanho da dívida pública que, segundo anúncio em fevereiro de 2022, havia ultrapassado a barreira dos US$ 30 trilhões, contra um PIB de US$ 25 trilhões (a valores nominais correntes). Assim, qualquer aumento da taxa de juros, por mínimo que seja, provoca elevação expressiva dos encargos com a dívida pública, acabando por indicar que mais adiante o governo norte-americano tomará medidas de austeridade e redução nos gastos públicos.

Todas essas conexões na economia dos Estados Unidos, envolvendo a taxa de juros e suas elevações, mostram que o nível de atividade econômica – produção e consumo – acaba se reduzindo de forma quase inevitável quando os juros crescem. E a situação se agrava quando o quadro geral vigente no ato do aumento da taxa de juros ocorre junto a aumento na taxa de inflação. Nos Estados Unidos, a inflação ocorrida sobretudo após a pandemia já vinha provocando estragos na economia local. Como é sabido, o fechamento de empresas e o isolamento social impuseram prejuízos às empresas e aos trabalhadores, e desorganizaram o sistema produtivo e o abastecimento. A inflação que atingiu os Estados Unidos – e, de resto, toda a economia global – prejudicou o crescimento econômico, situação que foi agravada pela guerra entre Rússia e Ucrânia e a elevação dos preços da energia, combustíveis e alimentos.

Recentemente, o Federal Reserve elevou a taxa básica de juros em 0,75 ponto porcentual pela segunda vez consecutiva, medida essa destinada a combater a maior inflação no país em 40 anos. Há sempre aqueles que discordam e não faltaram vozes para criticar essa medida; porém, considerando a dívida pública gigantesca e que parte dela é representada por títulos nas mãos de credores internacionais, a não elevação da taxa de juros diante de uma inflação que passou dos 9% ao ano significaria fuga imediata dos investidores, e isso imporia ao Tesouro norte-americano dificuldades para rolar a dívida pública. E, mesmo com o aumento recente da taxa de juros – que subiu para 2,5% ao ano diante de uma inflação de 9% –, a taxa real de juros continua sendo negativa, com desestímulo ao espírito de poupança em face dos prejuízos aos poupadores que confiaram na estabilidade da economia do país e aplicaram seu dinheiro em títulos do governo.

Esse cenário, portanto, faz que a recessão técnica agora verificada não constitua surpresa nem seja evento distorcido: é resultado de problemas graves, que têm consequências políticas internacionais. Um exemplo: até algum tempo atrás o maior detentor de títulos da dívida pública norte-americana era a China, que tinha mais de US$ 1 trilhão em títulos, mas vem reduzindo sua posição, fazendo dessa medida mais uma arma que o governo chinês usa para enfraquecer os Estados Unidos. Vale ressaltar que a China também vem enfrentando problemas graves, especialmente nos setores de infraestrutura, construção civil, crédito imobiliário, inadimplência bancária e sinais recessivos setoriais.

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Os analistas internacionais estão prevendo que a China crescerá a um ritmo muito menor do que se propagava, podendo mesmo flertar com recessão econômica. A coexistência de crise nos Estados Unidos e na China tem o poder de agravar a economia global, pois o comércio internacional é altamente dependente dessas duas economias gigantes. Aqui está o ponto capaz de afetar os países emergentes, reduzir o comércio exterior e espalhar desaceleração econômica, inclusive no Brasil. Restar saber como será o desempenho desses dois grandes países nos próximos trimestres e que rumo tomarão suas economias. No caso da economia norte-americana, acredita-se que ela tem maior capacidade de suportar recessão do que aguentar inflação elevada, e as recessões são vistas como eficientes para jogar a inflação para baixo. A conferir.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]