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O ministro Alexandre de Moraes na sessão de 14 de setembro, em que mais réus do 8 de janeiro foram julgados.
O ministro Alexandre de Moraes na sessão de 14 de setembro, em que mais réus do 8 de janeiro foram julgados.| Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

A semana terminou com as três primeiras condenações, pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, de réus do 8 de janeiro: Aécio Lúcio Costa Pereira, Thiago de Assis Mathar e Matheus Lima de Carvalho Lázaro cumprirão pena de prisão (17 anos para Pereira e Lázaro, e 15 anos para Mathar) e pagarão multa, tendo sido condenados pelos crimes de tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, associação criminosa, dano ao patrimônio da União e deterioração do patrimônio tombado. À parte todos os problemas que envolvem o julgamento, como o abandono da necessidade de individualização da conduta (que comentamos neste espaço dias atrás) e a ausência de prerrogativa de foro, houve uma divergência importante entre os ministros a respeito da própria natureza dos atos de 8 de janeiro: houve invasão, depredação, vandalismo, destruição de patrimônio, e disso não há dúvida alguma; mas houve, efetivamente, tentativa de golpe de Estado? Ou, para sermos mais específicos, todos os que estavam na Praça dos Três Poderes tinham um animus nitidamente golpista?

O desembargador aposentado Sebastião Coelho, que defendeu Aécio Pereira, argumentou que não. “Alguém trouxe um fuzil para Brasília? Naquele povo que estava ali no dia 8 de janeiro, não houve. Houve impedimento de funcionamento dos poderes? Qual poder deixou de funcionar por conta da ação que houve nesse prédio e demais prédios?”, questionou Coelho, para em seguida acrescentar: “Este Supremo Tribunal Federal estava em recesso, o Congresso estava em recesso. O presidente da República, no dia seguinte, fez reunião com Vossas Excelências, lá no Palácio do Planalto, e caminharam para cá. Houve um só dia em que os poderes não funcionaram? Nem um só dia”.

Os argumentos de Coelho foram acolhidos por Nunes Marques, a quem cabia o papel de ministro revisor dos processos, sendo o segundo a proferir seu voto. “Torna-se necessário para a caracterização do crime em análise [o de abolição violenta do Estado de Direito] que a conduta praticada pelo autor de fato tenha, ao menos, o potencial de produzir no plano concreto o resultado pretendido, ainda que não venha a ocorrer, uma vez que o verbo núcleo do tipo é ‘tentar abolir o Estado Democrático de Direito’. Com isso, embora não ocorra a abolição do Estado de Direito, o que poderia se consumar, em regra, por força de um verdadeiro golpe de Estado ou de uma revolução, é necessário, conforme exige a norma penal, que um dos poderes da República, em razão da violência e grave ameaça, seja impedido ou tenha restringido o regular exercício de suas atribuições em intensidade suficiente para abolir o Estado Democrático de Direito”, afirmou. “Tampouco há elemento indiciário, por menor que seja, da prática de qualquer ato de violência e grave ameaça contra algum agente político, representantes de um dos poderes da República, nem mesmo servidores. (...) A verdade é que a depredação dos prédios que são sede dos poderes da República em nenhum momento chegou a ameaçar a autoridade dos dignitários de cada um dos poderes, tampouco o Estado Democrático de Direito”, disse, ainda, Nunes Marques em seu voto, condenando Aécio Pereira por dano contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado, mas absolvendo-o das demais acusações.

Houve invasão, depredação, vandalismo e destruição de patrimônio no 8 de janeiro. Mas houve, efetivamente, tentativa de golpe de Estado? Ou, mais especificamente, todos os que estavam na Praça dos Três Poderes tinham um animus nitidamente golpista?

André Mendonça também rejeitou a tese de que haveria um golpe em curso. “Um golpe de Estado demanda atos não só de destituição do poder, mas do estabelecimento de uma nova ordem política institucional. Então, tenho que retirar o poder eleito, e instituir ou ter atos que me levem a buscar instituir um novo poder, ainda que ilegítimo. Preciso definir o que vou fazer com o Congresso (...), com o Supremo (...), com a imprensa, com a liberdade das pessoas (...). Uma série de planejamentos e condutas, que, com a devida vênia, não vi nesses movimentos”, afirmou. O ministro ainda acrescentou que “a perspectiva da atuação deles era criar uma situação de instabilidade institucional, mas qualquer ação de golpe de Estado dependeria de uma atuação de outras forças. Basicamente, dos militares”.

De fato, pode-se questionar como os invasores pretendiam derrubar o governo Lula ou fechar o STF atacando as sedes dos poderes em um dia no qual era perfeitamente sabido que os verdadeiros alvos – as autoridades, e não os edifícios – não seriam encontrados lá. Lula nem mesmo estava em Brasília em 8 de janeiro, tendo viajado ao interior paulista. Além disso, os invasores teriam tentado subverter a ordem institucional sem o apoio de nenhum poder armado, sendo que, em toda a história brasileira, a adesão das Forças Armadas sempre foi imprescindível para o sucesso de qualquer mudança de regime. O Exército, aliás, já vinha sendo criticado pelos manifestantes por tê-los supostamente “abandonado”, ao permitir a posse de Lula. Por esse ângulo, teria sido a tentativa de golpe mais desastrada da história mundial recente.

Alexandre de Moraes, o ministro relator e o primeiro a votar, no entanto, não entendeu dessa forma. Para ele, havia método na loucura: a estratégia era a de causar enorme tumulto em Brasília para, com isso, forçar uma intervenção dos militares com o objetivo de restaurar a ordem, ocasião em que eles finalmente seriam “convencidos” a ficar do “lado certo” e derrubar Lula – o que, de certa forma, responde a uma das objeções de Mendonça. “Os extremistas buscavam gerar o caos para obrigar as Forças Armadas, ante a interpretação deturpada do art. 142 da Constituição e do Decreto 3.897/2001, na edição de decreto para a garantia da lei e da ordem, com a assunção das funções dos Poderes constituídos”, escreveu o relator no voto pela condenação de Aécio Pereira. E é aqui que a análise vai ficando mais complexa.

Que havia entre os invasores muitos golpistas que de fato pretendiam derrubar Lula era certo, a julgar pelas convocações à “tomada de poder pelo povo” reproduzidas por Moraes em seu voto – não há interpretação metafórica possível para essa expressão. Que o meio para isso fosse o descrito por Moraes, no entanto, não é algo que possa ser atribuído a todos os réus. No caso de Matheus Lázaro, o relator expôs elementos que confirmam a sua teoria, como a transcrição de áudios enviados à mulher em que ele fazia afirmações como “É pra quebrar, pra dar desordem, pro Exército vir (...) tem que quebrar tudo (...) pro Exército entrar (...) A gente tem que fazer isso aí pro Exército entrar, e todo mundo ficar tranquilo”. No entanto, não fizera o mesmo com Aécio Pereira, e portanto seria uma ilação atribuir essa estratégia ao primeiro réu. Assim como também é ilação a motivação apresentada por Moraes para que Pereira tivesse registrado sua participação na invasão: “Por que eles mesmos se filmam e colocam nas redes sociais? Porque tinham a certeza que conseguiriam um golpe de Estado. O sentimento de impunidade era tão grande que filmaram, para depois poderem dizer que participaram do golpe de Estado, tinham certeza de que haveria adesão das Forças Armadas e que a polícia não iria retirá-los”, escreveu Moraes.

Julgar com base em ilações é mais que imprudência; é injustiça. Muito melhor seria que Moraes tivesse recorrido apenas aos elementos concretos, como falas do próprio Pereira que indicassem uma intenção golpista. Preso, ele dissera à polícia que “seu objetivo era lutar pela liberdade”, mas “não sabe dizer se o procedimento para alcançar tal liberdade seria depondo o presidente eleito”; no entanto, dentro do Senado, ele dissera que, “como representante do povo, estou aqui para dizer que não aceito esse governo fraudulento como nosso representante (...) saiam nos quartéis, saiam agora. Fiquem nas ruas e peçam SOS Forças Armadas”.

Para que haja justiça, é imprescindível separar devidamente os golpistas convictos dos golpistas “por ignorância”, ou os golpistas dos vândalos revoltados, analisando cada caso com base no que cada réu realmente fez e disse

Disso tudo, e sem entrar no mérito das condenações específicas, a lição que temos de tirar, para a própria preservação do Estado Democrático de Direito e de tudo o que ele representa, é que há enorme perigo nas criminalizações “no atacado”. Havia invasores da Praça dos Três Poderes que estavam realmente empenhados em levar adiante um golpe de Estado? Certamente que sim, e o fato de se tratar de uma empreitada com pouca ou nenhuma chance de sucesso não exime os golpistas de responder por isso. Havia invasores que não desejavam um golpe e agiram guiados mais por um “efeito manada” catártico ou pelo simples desejo de manifestar revolta contra Lula ou contra o STF? Também podemos afirmar, sem medo de errar, que sim. Havia aqueles, tanto na praça quanto nos acampamentos, que desejavam uma “intervenção militar” julgando, de boa fé, que tal ação tinha amparo constitucional, e por isso não seria propriamente um golpe de Estado? Sim, ainda que esta seja uma interpretação bastante equivocada do artigo 142 da Constituição.

E eis aqui o centro de toda a questão: não há como julgar e condenar “no atacado” um grupo tão grande desconsiderando todas essas nuances e atenuantes como o “erro de tipo” e o “erro de proibição”, descritos nos artigos 20 e 21 do Código Penal e aplicáveis, por exemplo, a quem acreditava equivocadamente na legalidade de uma intervenção militar para depor um governo. Para que haja justiça, é imprescindível separar devidamente os golpistas convictos dos golpistas “por ignorância”, ou os golpistas dos vândalos revoltados, analisando cada caso com base no que cada réu realmente fez (o que vai muito além de estar no lugar errado, na hora errada e na companhia errada) e disse, às autoridades ou por conta própria nas mídias sociais. Sem isso – e sem que se resolvam também todos os demais problemas, como a violação do princípio do juiz natural, os obstáculos à ampla defesa dos réus, as penas desproporcionais e a chantagem institucionalizada por meio da oferta de acordos de não persecução penal em troca de confissões –, os julgamentos do 8 de janeiro têm tudo para ser, usando as palavras de um colega de Moraes em uma decisão totalmente infeliz, “um dos maiores erros judiciários da história do país”.

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