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Em muitas de suas manifestações sobre a Lava Jato, dentro e fora dos autos, o ministro Gilmar Mendes criticava a atuação da força-tarefa e dos juízes afirmando que eles se moviam guiados por um Código de Processo Penal próprio, “da Rússia”. Uma afirmação absurda, claro, mas que cabe muito bem no momento em questão, já que uma característica das perseguições do totalitarismo soviético aos dissidentes era considerar igualmente suspeitos (ou mesmo culpados) todos os familiares e amigos de quem ousasse contestar o regime comunista. Algo similar acaba de ser aplicado pelo ministro Alexandre de Moraes no caso da deputada licenciada Carla Zambelli.
Em maio, Zambelli foi condenada pela Primeira Turma do STF a dez anos de prisão, multa de R$ 2 milhões e perda do mandato, no caso envolvendo uma suposta invasão hacker aos sistemas do Conselho Nacional de Justiça. No início de junho, a deputada anunciou que estava no exterior para um tratamento de saúde, que pretendia se radicar na Europa para poder denunciar com liberdade os desmandos supremos, e que pediria licença do mandato. No mesmo dia, o líder do PT na Câmara, Lindbergh Farias, apresentou um pedido de prisão preventiva de Zambelli, acatado pela Procuradoria-Geral da República. No dia seguinte, Moraes expediu o mandado de prisão preventiva; no sábado, dia 7, o ministro ordenou a prisão definitiva de Zambelli e comunicou à Câmara sobre a perda do mandato.
Alexandre de Moraes faz o filho e a mãe de Zambelli pagarem por atos atribuídos não a eles, mas à deputada, violando o princípio da intransmissibilidade da pena
Não é nosso objetivo, aqui, analisar nem os fundamentos para a condenação de Zambelli, nem as ordens de prisão – que causaram muitas dúvidas na Câmara, já que o artigo 53 da Constituição afirma que deputados só podem ser presos “em flagrante de crime inafiançável”, e o artigo 55 afirma que, em caso de condenação criminal transitada em julgado, “a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados (...), por maioria absoluta”. É em uma série de medidas cautelares acessórias à ordem de prisão que Moraes emula seus antecessores soviéticos, envolvendo a família da deputada licenciada e muitos outros brasileiros que apoiam Zambelli, sejam ou não próximos da parlamentar.
Na mesma decisão que ordenou a prisão preventiva, Moraes ainda determinou a suspensão dos perfis de Zambelli em mídias sociais (uma medida inconstitucional, como já demonstramos à exaustão neste espaço), mas não parou por aí: o ministro obrigou os provedores a suspender também as contas da mãe e do filho de Zambelli; bloqueou a verba parlamentar de R$ 126 mil mensais, usada para a contratação de assessores; e ordenou que o Banco Central forneça dados detalhados, como nomes e valores, das transferências feitas por meio de Pix à deputada, que solicitou ajuda financeira para arcar com as custas dos processos.
Ao longo dos últimos anos, Moraes e seus colegas de STF têm violado sistematicamente inúmeras garantias constitucionais e princípios básicos do direito, como liberdade de expressão, imunidade parlamentar, devido processo legal, direito à ampla defesa, individualização da conduta, juiz natural. Agora, o ministro acrescenta à lista a intranscendência ou intransmissibilidade da pena. Este princípio é uma conquista civilizatória de séculos, estando presente já no clássico Dos delitos e das penas, de Cesare Beccaria, publicado em meados do século 18, e a Constituição brasileira o define e protege no inciso XLV do artigo 5.º, ao dizer que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado”.
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Mas nem a doutrina, nem a Constituição importam para Alexandre de Moraes, que faz o filho e a mãe de Zambelli pagarem por atos atribuídos não a eles, mas à deputada – e nem mesmo a afirmação, feita pela parlamentar, de que suas contas passariam a ser geridas pela mãe justificaria a censura. Já os brasileiros que se dispuseram a ajudar financeiramente a deputada estarão expostos – talvez não publicamente, mas pelo menos diante de um ministro que já demonstrou não ter limites quando se trata de perseguir críticos, e isso já não é pouco.
Como afirmou o colunista da Gazeta do Povo Flávio Gordon, “sob a desculpa de ‘evitar a continuidade delitiva’, pune-se preventivamente não o infrator, mas o círculo familiar e social do réu, num espetáculo que, ao mesmo tempo em que amedronta, lança o sinal: ninguém está seguro”. Esse tipo de intimidação tem o objetivo de “tornar o custo da dissidência pessoalmente insuportável. Não apenas para o rebelde, mas para quem com ele partilhasse laços de sangue ou afeto”. Um modus operandi totalmente incompatível com um Estado de Direito, e que mostra os extremos autoritários e os retrocessos civilizatórios que a suprema corte está promovendo em nome de uma ilusória “defesa da democracia”.



