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O tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid deixou a prisão em 9 de setembro.
O tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid deixou a prisão em 9 de setembro.| Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

“É muito grave para a Justiça ter esse tipo de vexame. As pessoas só eram soltas depois de confessarem e fazer acordo de leniência. Isso é uma vergonha e nós não podemos ter esse tipo de ônus. Coisa de pervertidos. Claramente se tratava de prática de tortura, usando o poder do Estado. Sem dúvida nenhuma se trata de pervertidos incumbidos de funções públicas” – a frase é de Gilmar Mendes, um dos ministros do STF que não economiza nas palavras em suas críticas à Lava Jato, e foi proferida durante o julgamento de um habeas corpus de dois investigados pelo petrolão, em maio deste ano. A virulência desta e de outras manifestações de ministros a respeito dos métodos atribuídos por eles à Lava Jato contrasta brutalmente com o silêncio em torno de uma decisão recente de Alexandre de Moraes que se encaixa perfeitamente na descrição feita por Mendes desta “coisa de pervertidos”.

No dia 9 de setembro, Moraes homologou a delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro, que estava preso desde o início de maio. O militar entrou na mira do Supremo durante uma investigação sobre uma suposta adulteração em cartões de vacinação de Bolsonaro e sua família, mas ele logo se viu no meio de outros escândalos como o caso das joias sauditas e o texto apelidado de “minuta do golpe”, encontrado na residência do ex-ministro Anderson Torres – o que, aliás, aponta para a possibilidade de o tenente-coronel ter sido vítima do procedimento abusivo da “pesca probatória”. No mesmo dia em que a delação foi homologada, Cid já ganhou as ruas, usando tornozeleira eletrônica e com restrições ao deslocamento. Não nos interessa, aqui, entrar nos pormenores dos três casos concretos, mas apontar a hipocrisia presente nas palavras e ações dos supremos ministros.

Até existe lei no Brasil, mas sua aplicação depende do nome que está no processo

De acordo com Gilmar Mendes e outros adversários da Lava Jato no STF, prisões preventivas de investigados no petrolão eram solicitadas e decretadas sem motivo válido que as justificassem (e que constam do artigo 312 do Código de Processo Penal), apenas para pressionar esses investigados a assinar delações premiadas ou levar suas empresas a fazer acordos de leniência; quando isso ocorria, essas pessoas recuperavam a liberdade quase que imediatamente. Não há a menor dúvida de que tal procedimento consistiria em um abuso judicial, “vergonha” e “tortura”, para usar as palavras de Mendes, pois a prisão preventiva não serve para forçar ninguém a confessar. No entanto, ao contrário do que alegam os ministros, esse jamais foi o modus operandi da Lava Jato. Levantamento do procurador Douglas Fischer, que integrava a equipe da Lava Jato na Procuradoria-Geral da República, mostram que, em quase 200 acordos fechados pela operação em três estados e no Distrito Federal, apenas sete investigados foram soltos, e em nenhum caso a liberdade fez parte do acordo – a soltura ocorreu porque não se verificavam mais os requisitos do artigo 312 do CPP.

O mesmo, obviamente, não se pode dizer do caso de Mauro Cid. Apenas com muita ingenuidade se pode acreditar que, num passe de mágica, as circunstâncias que supostamente justificariam a manutenção de sua prisão preventiva tenham desaparecido subitamente no momento em que o acordo de delação foi homologado. Muito mais provável é que essas circunstâncias já não existiam antes da delação, ou até mesmo jamais tenham existido; em ambos os casos, o uso da prisão preventiva e da delação como meio abusivo de fazer avançar a investigação – exatamente aquilo que Gilmar Mendes critica com tanta ênfase – fica patente. O fato de a delação de Cid ter sido acertada com a Polícia Federal, sem a participação do Ministério Público, acrescenta uma camada adicional de hipocrisia ao processo, pois o plenário do STF já anulou – com o voto de Moraes, inclusive – acordos celebrados de forma semelhante no âmbito da Lava Jato.

Cada episódio desses evidencia a maneira de agir da corte com “poder político”, na qual alguns membros têm como missão autoatribuída “derrotar o bolsonarismo”. Até existe lei no Brasil, mas sua aplicação depende do nome que está no processo. Para quem está de um lado do espectro político-ideológico, ou tem amigos neste lado, até mesmo atos realizados completamente de acordo com a lei serão anulados e revogados, com nulidades inventadas; para quem está do outro lado, as garantias constitucionais, o devido processo legal e o direito à ampla defesa são sumariamente cassados pelos ministros, e assim até o uso da prisão preventiva para arrancar uma confissão deixa de ser “coisa de pervertidos” para se transformar em “defesa da democracia”.

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