Manifestar-se fora dos autos é esporte ao qual os ministros do Supremo Tribunal Federal se entregam com gosto. Ao contrário dos magistrados de cortes constitucionais de democracias sólidas, que mantêm a discrição necessária ao papel que exercem, os membros do STF frequentemente dão palestras e entrevistas, publicam artigos na imprensa, e chegam até mesmo a assinar manifestos com referências veladas a temas que terão de julgar no futuro e participar de eventos de cunho declaradamente político. Se em fevereiro o agora aposentado Ricardo Lewandowski causou espécie ao prestigiar o MST, com direito a um discurso antidemocrático, desta vez foi Luís Roberto Barroso a desmoralizar o Supremo com sua fala no congresso nacional da UNE, outra entidade-satélite do petismo, feudo particular do PcdoB.
Na noite de quarta-feira, durante a abertura do congresso, Barroso negou o óbvio ao dizer que “só ditadura fecha Congresso, só ditadura cassa mandatos, só ditadura cria censura, só ditadura tem presos políticos, nós percorremos um longo caminho para que as pessoas pudessem se manifestar de qualquer maneira que quisessem”. Primeiro, porque no Brasil de hoje as pessoas não podem se manifestar livremente: há uma série de assuntos e posturas que são tabus, da pandemia à urna eletrônica e a assuntos que desagradem a militância identitária, e falar sobre eles pode render desmonetização, supressão de perfis em mídias sociais, cancelamento de passaportes e bloqueio de contas bancárias, entre outras medidas. Segundo, porque, a não ser que Barroso esteja afirmando que o Brasil é uma ditadura, o que não parece ter sido sua intenção, ele estaria negando a existência, por aqui, de censura, cassação arbitrária de mandatos e presos políticos. No entanto, essas são tristes realidades em nosso país – basta perguntar (e isso para ficar em alguns poucos exemplos) à produtora Brasil Paralelo, ao ex-deputado Deltan Dallagnol e aos presos do 8 de janeiro, acusados sem individualização de conduta.
Teria o STF usado seu “poder político” para se tornar mais um agente de oposição política a Bolsonaro e suas plataformas, em vez de se ater à defesa da lei e da Constituição?
Mas foi na sequência que Barroso chegou ainda mais longe. Vaiado por estudantes ainda mais à esquerda que a média da UNE, por questões ligadas ao piso da enfermagem e ao impeachment de Dilma Rousseff, o ministro iniciou dizendo que “já enfrentei o bolsonarismo” e, mais adiante, depois de suas afirmações sobre a ditadura, emendou: “nós derrotamos a censura, nós derrotamos a tortura, nós derrotamos o bolsonarismo”. Diante da enorme e justificada repercussão negativa de sua fala, o ministro tentou emendar dizendo que, por “bolsonarismo”, estava se referindo ao “extremismo golpista e violento”, o que, de certa forma, piorou ainda mais a situação. Afinal, dezenas de milhões de brasileiros que compartilham das posições de Jair Bolsonaro sobre vários temas, e por isso se assumem como “bolsonaristas”, nem de longe endossam a violência do 8 de janeiro, mas foram colocados neste balaio por Barroso. Além disso, de nada adianta o ministro afirmar que uma “visão de mundo conservadora e democrática (...) é perfeitamente legítima” quando, ao menor sinal de conservadorismo vindo do Executivo ou do Legislativo, o STF chama a responsabilidade para si e legisla ou administra contrapondo-se a essa visão, ativismo que Barroso defende explicitamente com frases de efeito, como a referência a “empurrar a história”.
Além do insulto gratuito a quase quatro em cada dez eleitores brasileiros, Barroso, com suas referências a uma “luta” contra o “bolsonarismo”, lançou ainda mais dúvidas sobre a atuação do Supremo e de outros tribunais superiores nos últimos quatro anos. Se acrescentarmos às declarações de quarta-feira uma fala anterior, sobre o “poder político” que o Judiciário passou a exercer recentemente, o questionamento é inevitável: nas ocasiões nas quais STF, STJ ou TSE se contrapuseram a Bolsonaro, ao longo do mandato e durante a campanha de 2022, as cortes agiram com razões puramente jurídicas ou por razões políticas, com os ministros imbuídos da convicção de que era necessário “lutar contra o bolsonarismo” e que para isso deveriam usar o poder do qual foram investidos? Teria o STF usado seu “poder político” para se tornar mais um agente de oposição política a Bolsonaro e suas plataformas, em vez de se ater à defesa da lei e da Constituição?
São perguntas que merecem investigação e resposta, especialmente quando sabemos que ao menos algumas das decisões dos tribunais superiores nos últimos quatro anos careceram completamente de lastro legal, isso quando não contrariaram frontalmente a Constituição e as demais leis. Enquanto tais decisões costumeiramente prejudicavam Bolsonaro e seus apoiadores, o petismo e seus aliados recebiam carta branca, a começar por todo o processo que levou ao fim dos processos contra Lula (que teve voto favorável de Barroso) e à declaração de suspeição de Sergio Moro (em que Barroso votou a favor do ex-juiz). O Senado, que a Constituição escolheu para ser o contrapeso ao STF, tem a obrigação de bem exercer este papel, e não apenas senadores de oposição, mas o próprio presidente da casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), condenaram a fala do ministro do Supremo. Mas a casa poderia fazer muito mais e tem os meios para isso, mesmo que não se chegue ao ponto de um impeachment de Barroso.
Magistrados não deveriam se pronunciar fora dos autos, muito menos ter qualquer tipo de atuação político-partidária, o que inclui abster-se de estar e falar em eventos de evidente caráter político. Magistrados lutam pela lei e pelo seu cumprimento, não contra ou a favor de políticos e seus apoiadores. Mas, com uma única frase, Barroso negou esses dois princípios básicos que regem a magistratura, colocando a si mesmo e à corte que integra sob a sombra da suspeição. O Supremo já vinha colocando sua credibilidade em xeque de forma objetiva, com decisões claramente opostas à letra da lei e reversões inexplicáveis de jurisprudência, criando insegurança jurídica; Barroso, com seu “nós derrotamos o bolsonarismo”, acrescenta agora o caráter subjetivo e alimenta ainda mais as suspeitas sobre a real motivação que guia os ministros.
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