
Desde a zero hora de quarta-feira, dia 1.º, o Texas se tornou o estado norte-americano mais seguro para um nascituro. Isso porque entrou em vigor a legislação estadual que proíbe o aborto, por qualquer motivo, a partir do momento em que se pode detectar batimentos cardíacos no feto, o que ocorre por volta da sexta semana de gestação – como muitas vezes a gravidez só é descoberta em um estágio posterior, a nova lei quase que inviabiliza o aborto no estado. A medida chegou a ser contestada no Judiciário por grupos pró-aborto, mas a Suprema Corte, por cinco votos a quatro, decidiu não se pronunciar sobre o assunto, o que na prática serviu como um sinal verde para que a lei seja aplicada no Texas.
Militantes em defesa do direito ao aborto e até o presidente Joe Biden atacaram a lei texana, descrevendo-a como uma violação flagrante de Roe v. Wade, a decisão de 1973 da Suprema Corte que limitou enormemente a autonomia dos estados em relação ao aborto. Pelas regras estabelecidas naquela ocasião, os estados só podem proibir o aborto no terceiro trimestre de gravidez, e ainda assim precisariam aceitá-lo em caso de risco de vida para a mãe. No segundo trimestre, ele só pode ser proibido em alguns casos ligados à proteção da saúde da gestante. E, no primeiro trimestre, não poderia ser proibido por razão alguma – assim, de fato a lei texana desafia a determinação dada pela Suprema Corte quase 50 anos atrás.
Já se vai quase meio século de matança indiscriminada de seres humanos indefesos e inocentes nos Estados Unidos com o beneplácito da Suprema Corte
No entanto, nenhuma instância do Judiciário norte-americano se dispôs a derrubar a lei, graças a uma providência inteligente tomada pelo legislador texano: a aplicação da lei não ficará a cargo do Estado, mas de qualquer cidadão, que pode processar os envolvidos na realização de um aborto. Cinco justices – como se chamam os integrantes da Suprema Corte – aceitaram a alegação do governo texano de que não lhe cabia garantir o cumprimento da lei, e por isso ele não podia ser acionado judicialmente. O sucesso da estratégia já animou governadores e legisladores pró-vida em estados como a Flórida.
Sem dúvida, um cenário ainda melhor seria aquele em que a Suprema Corte aceitasse julgar o caso e decidisse pela manutenção da lei texana, revertendo Roe v. Wade. Afinal, a decisão de 1973, além de se basear em premissas completamente equivocadas, como a prevalência do direito à privacidade da mãe sobre o direito à vida do nascituro, significou uma intromissão do Judiciário norte-americano sobre a atividade legislativa, e ainda por cima atropelou um princípio muito caro ao modelo federalista norte-americano, que é a autonomia dos estados, inclusive na elaboração de leis penais. O mais lógico seria que a Suprema Corte simplesmente devolvesse aos estados o direito de determinar se, quando e em que circunstâncias o aborto seria permitido – isso ainda pode ocorrer, já que em 2022 a corte julgará uma outra lei, do Mississippi, que foi aprovada em 2018 e proíbe o aborto a partir da 15.ª semana de gestação, ou seja, também desafia Roe v. Wade.
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Os legisladores texanos, no entanto, não quiseram dar por certa uma vitória da vida no caso do Mississippi, apesar de a Suprema Corte ter, agora, seis justices mais conservadores contra três ditos “progressistas”. Existe, por exemplo, a possibilidade de alguns desses magistrados preferirem manter Roe v. Wade com base no respeito à coisa julgada, para evitar a confusão causada por reversões de entendimentos judiciais, mesmo que com um intervalo de tantos anos. Um sinal veio já nesta quarta-feira: um dos juízes conservadores, John Roberts, se alinhou com os três “progressistas” que pretendiam aceitar a ação contra a lei do Texas. Daí a opção prudente pela redação que acabou “blindando” o texto de uma contestação judicial: se em 2022 a Suprema Corte mantiver a lei do Mississippi, revertendo Roe v. Wade, chega-se ao desfecho ideal; no entanto, se a decisão de 1973 for mantida, a lei texana mostrará um novo caminho para proteger a vida do nascituro.
Já se vai quase meio século de matança indiscriminada de seres humanos indefesos e inocentes nos Estados Unidos com o beneplácito da Suprema Corte. É verdade que, mesmo com uma eventual derrubada de Roe v. Wade, haverá estados que ainda permitirão o aborto, especialmente aqueles onde Executivo e Legislativo são dominados pelo Partido Democrata. Mas a devolução do poder de decisão aos estados garantirá que, ao menos em algumas partes dos EUA, a vida por nascer encontre proteção muito maior que a verificada hoje. Que no próximo ano a maioria dos membros da Suprema Corte veja o equívoco cometido em 1973 e o reverta, pois não faltam argumentos para isso – nem jurídicos, nem científicos, nem éticos.



