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Na sessão desta quinta-feira, o plenário do TSE manteve a censura ao documentário “Quem mandou matar Bolsonaro?”, da Brasil Paralelo.| Foto: Antonio Augusto/Secom/TSE

“O Poder Judiciário não age de ofício”, afirmou Rosa Weber, pouco mais de um mês atrás, quando tomou posse na presidência do Supremo Tribunal Federal. Como isso é algo que qualquer estudante de Direito aprende praticamente nos primeiros dias de faculdade, a repetição de algo tão trivial em um discurso de posse no principal tribunal do país indica que essa verdade anda esquecida em corredores supremos e superiores. O Brasil teve uma prova disso nesta quinta-feira, em sessão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) – e com a participação de nada menos que três membros da corte agora presidida por Rosa Weber.

Seguindo sugestão do presidente da corte eleitoral, Alexandre de Moraes (e como poderia ser diferente?), o plenário do TSE aprovou uma resolução concedendo à presidência do órgão o poder de, sem provocação externa alguma – seja de advogado de candidato ou coligação, seja do Ministério Público Eleitoral –, ordenar de ofício a remoção de conteúdos na internet. Além disso, a mesma resolução ainda enxuga os prazos para que os provedores de conteúdo acatem as ordens do TSE, e impõe multas que chamam a atenção não apenas pela desproporcionalidade – R$ 100 mil a R$ 150 mil por hora de descumprimento –, mas também pelo fato de poderem incidir até três dias depois da realização do segundo turno, o que só pode se explicar pelo desejo de ordenar a retirada de qualquer contestação ao resultado do pleito.

Quando ministros do STF, “guardiões da Constituição”, endossam a censura prévia e colaboram para dar ao TSE o poder de desprezar o devido processo legal, isso só demonstra o tamanho da degradação institucional a que o Brasil está submetido

O fato de os novos superpoderes do presidente do TSE serem aplicáveis apenas à “extensão de decisão colegiada proferida pelo Plenário do Tribunal sobre desinformação, para outras situações com idênticos conteúdos” – ou seja, os atos de ofício só seriam possíveis para se ordenar a remoção de conteúdo idêntico ao que a corte já julgou passível de retirada anteriormente, embora em outras URLs, sites ou contas – não serve de atenuante aqui, até porque a resolução não se limitou ao poder extraordinário de reprimir conteúdos específicos. Seu artigo 4.º prevê a “suspensão temporária de perfis, contas ou canais mantidos em mídias sociais” que realizem “produção sistemática de desinformação, caracterizada pela publicação contumaz de informações falsas ou descontextualizadas sobre o processo eleitoral”, um conceito bastante vago para justificar censura. Afinal, em poucos dias o país já descobriu que mesmo a divulgação de informações verdadeiras, como o apoio de Lula ao ditador Daniel Ortega, ou todos os escândalos de corrupção envolvendo o petismo, pode ser considerada “desinformação” à base de “informações descontextualizadas”. Em outras palavras, “desinformação” se tornou não a mentira factual cuja falsidade é possível de comprovar, mas tudo aquilo que os ministros do TSE desejarem classificar como tal.

O devido processo legal não é princípio do qual se pode abrir mão dessa forma, e que isso tenha sido feito com a anuência de outros dois ditos “guardiões da Constituição” (Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski) só demonstra o tamanho da degradação institucional a que o país está submetido. Mas a transformação de advogados e membros do MPE em supérfluos não foi a única aberração produzida pelo TSE em seu dies horribilis. Nesta mesma quinta-feira, a censura prévia decretada pelo ministro Benedito Gonçalves ao documentário Quem mandou matar Jair Bolsonaro?, da produtora Brasil Paralelo, foi confirmada no plenário, pelo apertado placar de 4 a 3 – graças aos três ministros que integram o Supremo e seguiram o relator.

Enquanto os outros três integrantes da corte expunham o óbvio – caso de Raul Araújo, para quem “sem que se saiba o teor da manifestação artística, não se admite, me parece, no Estado Democrático de Direito, o exercício de censura sobre o pensamento ainda não divulgado, sob pena de se estar a presumir o conteúdo, de antecipar a presunção quanto ao seu ajuste ao ordenamento, e antecipar presumidamente uma sanção ao pensamento” –, os supremos ministros se esforçavam em malabarismos semânticos para afirmar que a censura (prévia, ainda por cima) não era censura. Especialmente emblemáticas foram as palavras de Cármen Lúcia, que, visivelmente ciente de que pisava em ovos, falou em acompanhar o relator “com todos os cuidados”, afirmando que o item específico que proibia o documentário “a preocupa enormemente” e que, caso o relator percebesse que a situação estava “desbordando para uma censura”, a medida deveria ser revogada – suprema ingenuidade, pois Gonçalves tanto não considera estar censurando que o afirmou claramente em sua liminar, afirmando tratar-se de mero “adiamento” da estreia do documentário.

“Vejo isso como uma situação excepcionalíssima”, continuou Cármen Lúcia, usando terminologia que seu colega de STF Lewandowski também empregou, ao dizer que “situações excepcionais exigem medidas excepcionais”. É uma escolha de palavras peculiar. “Ninguém aqui é ingênuo”, disse também Lewandowski; falava no contexto específico do suposto “ecossistema de desinformação”, mas podemos entender a frase de forma mais ampla. Cármen Lúcia, Gonçalves, Moraes e Lewandowski de fato não são ingênuos; eles conhecem a Constituição, inclusive seu artigo 220. Sabem o que estão fazendo, mas defendem seus atos afirmando que, no fim das contas, a situação exige abrir exceções – e é exatamente nisso que consiste um... Estado de exceção. É para onde caminhamos, graças a nossos tribunais superiores.

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