Em uma corte constitucional, como é o Supremo Tribunal Federal (STF), seria esperado que seus integrantes se destacassem pela defesa sem concessões da Constituição e, especialmente, das garantias democráticas que ela promove. No entanto, é justamente o fato de essa disposição andar tão rara na corte suprema que torna notável o voto do ministro André Mendonça no julgamento sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet. Notável e corajoso, pois, além de defender com maestria os princípios constitucionais, o voto ainda foi uma rara contestação ao pensamento e à prática recente de alguns de seus colegas que insistem em se portar como governantes de facto do país, ao arrepio do que diz a própria Constituição.
Se voltamos a este assunto poucos dias depois de o termos abordado neste mesmo espaço, isso não se deve apenas à proximidade da continuação do julgamento, marcada para esta semana e que ainda terá mais sete votos, mas também pela importância do que está sendo decidido no Supremo. Em resumo, estamos diante de um embate entre uma visão jurídica que relativiza – na verdade, até mesmo aceita e promove – a censura, e uma outra visão jurídica que demonstra respeito à liberdade de expressão e consciência de seu papel em uma sociedade dita democrática. E nossa descrição está longe de ser uma dicotomia simplificadora ou maniqueísta, pois as palavras e os atos dos ministros demonstram muito bem ambas as posições.
O voto de Mendonça é uma eloquente – e juridicamente muito bem fundamentada – defesa da liberdade de expressão como princípio fundante da democracia
A Constituição protege a liberdade de expressão e veda a censura em vários de seus trechos, notadamente os incisos IV e IX do artigo 5.º – cláusulas pétreas, portanto – e o artigo 220, mas nunca entendeu esse direito como absoluto. Há, de fato, limites à liberdade de expressão, mas eles estão todos previstos em lei e qualquer restrição exige o devido processo legal. É por isso que o artigo 19 do Marco Civil da Internet prevê a responsabilização legal dos provedores apenas em caso do descumprimento de decisões judiciais para a remoção de conteúdos específicos (à exceção dos casos de violação de direitos autorais e “pornografia de vingança”, em que basta a notificação da parte ofendida), indicando que qualquer conteúdo controverso precisaria passar pela análise do braço estatal para identificar o cometimento de eventual crime. Este modelo, amplamente discutido à época da tramitação do Marco Civil no Congresso, é o que melhor protege tanto a liberdade de expressão quanto os direitos daqueles que eventualmente venham a ser agredidos por manifestações on-line.
No entanto, o que os demais ministros do STF que já deram seu voto – Dias Toffoli, Luiz Fux e, em menor medida, Luís Roberto Barroso – pretendem é acabar com este modelo e substituí-lo por obrigações de remoção imediata de qualquer conteúdo potencialmente problemático por parte dos provedores (o eufemisticamente chamado “dever de cuidado”) ou pelo notice and takedown, o modelo em que a obrigação legal de remover um conteúdo passa a vigorar após notificação. Ninguém precisa ter notável saber jurídico para saber que o resultado da adoção ampla de qualquer um dos dois sistemas resultará em censura ampla, geral e irrestrita: seja por iniciativa dos próprios provedores, seja pela ação de grupos militantes capazes de vigiar e notificar qualquer publicação que lhes desagrade. E não se argumente que a responsabilidade pelas restrições à liberdade de expressão será toda de empresas privadas, pois a verdade é que elas o farão apenas por medo de processos judiciais. A censura continuará a ser promovida pelo Estado: não explicitamente, mas por terceirização – e isso se percebe pela intenção de Toffoli ao ter incluído, em seu voto, uma lista de “temas proibidos”.
Mendonça recusou completamente essa promoção – às vezes dissimulada, às vezes explícita – da censura. A liberdade de expressão não é mera “bondade” que o Estado concede ao cidadão e pode retirar ou reduzir a qualquer momento, de forma arbitrária; ela é pilar da democracia, e só pode sofrer restrições em casos bastante específicos. Ela é inclusive a “liberdade para as ideias que odiamos”, como disse o juiz da Suprema Corte americana Oliver Wendell Holmes Jr. Esse foi o eixo condutor do voto de Mendonça; uma ideia básica, que todo brasileiro teria o direito de esperar de qualquer guardião da Constituição, mas que está sob ataque desses mesmos ditos guardiões, que desejam considerar inconstitucional o artigo 19 do Marco Civil da Internet.
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Ora, o que afronta a Constituição não é o texto em debate no STF. O que é verdadeiramente inconstitucional é a instauração de um ambiente de censura generalizada; é a resolução do Tribunal Superior Eleitoral que já impôs aos provedores o “dever de cuidado”; é a suspensão de perfis inteiros em mídias sociais, que configura censura prévia e ostraciza brasileiros que são privados de participar da ágora digital, em uma versão moderna da antiga “morte civil”. É, aliás, igualmente notável e corajoso que Mendonça tenha feito questão de afirmar claramente a inconstitucionalidade dessa prática diante de seu maior promotor, o censor-mor da República, ministro Alexandre de Moraes.
Apesar dessa referência explícita, seria uma injustiça reduzir o voto de Mendonça a um discurso contrário a Moraes, ou mesmo um favor às big techs. O voto é uma eloquente – e juridicamente muito bem fundamentada – defesa da liberdade de expressão como princípio fundante da democracia, e por isso precisa ser devidamente destacado por todos os que estão comprometidos com essa garantia básica do cidadão, já bastante vilipendiada nos últimos anos. De formadores de opinião a entidades de classe, todos precisam aproveitar estas poucas horas que nos separam da continuação do julgamento sobre o Marco Civil da Internet para manifestar sua rejeição à censura que os “editores de um país inteiro” querem transformar na lei da nação.