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Penélope ficou 20 anos sem Ulisses até que ele retornasse das peripécias por terra e mar. O nosso Ulysses está desaparecido há 20 anos, mas não retornará do mar que o levou. Nem de longe mantivemos a fidelidade de Penélope, porém há uma pontinha de saudade, quase de arrependimento diante da pusilanimidade dos pretendentes que permitimos se apresentassem para o lugar de Ulysses. Qual lugar? O de estadista que distingue os interesses permanentes das transitoriedades, ainda que desejadas pela multidão. Estadista que assume os ônus eleitorais decorrentes de conduzir o esforço da nação no presente para a fruição dos benefícios no futuro. Estadista que exerce poder para a coletividade, não para si.

O poder apodrece ou enobrece, depende do caráter de quem o exerce. Ulysses, em meio século de vida pública, atuou como prumo na construção da democracia que hoje propicia tranquilidade em momentos intensos como a condenação judicial de políticos de todos os matizes envolvidos no mensalão, episódio que, de certa forma, representou a bruxa Circe na nossa odisseia democrática, transformando a política em porcaria. Os autores da compra de parlamentares em escala industrial enferrujavam a balança de poderes entre Executivo e Legislativo, pondo em risco a consolidação das iniciativas de Ulysses. Certamente, na presença dele, não ocorreria desvio desse jaez. Democracia é construção permanente, nunca está pronta, perfeita. O julgamento da Ação Penal 470 pelo STF, com transmissão integral pela televisão, é resultado do que já foi construído e, ao mesmo tempo, afirma a continuidade no rumo de Ulysses.

Caçador de nuvens, foi caçado por tempestades, mas não esmoreceu. Ulysses se candidatou a presidente em 1973 – sabendo de antemão da derrota no Colégio Eleitoral montado para referendar Ernesto Geisel. Com a candidatura, em plena vigência do AI-5, foi a voz da resistência não violenta ao poder sem peias. Em 1974, a sua voz encontrou eco nas vitórias eleitorais da oposição, ponto da virada entre a luta com armas ou com votos. Depois, na senda da liberdade, Ulysses se tornou o Senhor Anistia, Senhor Diretas, Senhor Constituinte, Senhor Impeachment. O seu itinerário político abriu as estradas por onde o Brasil transita para sair do status de república de bananas para o de democracia avançada.

A campanha das Diretas foi, analogicamente, o cerco à muralha de Troia. Ulysses percebeu que, se marchasse pessoalmente – apoiado pela multidão –, poderia vencer, mas o país seria derrotado pela cisão política. Cioso do seu compromisso com a obra democrática, engendrou o cavalo de Troia da candidatura de Tancredo Neves à Presidência no Colégio Eleitoral, com apoio amplo, incluindo próceres do ancien régime. Ao distribuir a vitória e evitar a humilhação dos derrotados houve paz, não apenas o fim da belicosidade.

Dizendo que o segredo da felicidade é fazer do dever um prazer, cumpriu o dever sem amargura diante da derrota eleitoral na candidatura a presidente da República em 1989. Doente, manteve a sagacidade ao ser chamado de gagá por Collor de Melo: "Minhas drogas eu compro na farmácia."

Foi-se o homem, ficou a lenda. Que venham os bardos para a imortalizar.

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