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A presidente argentina, Cristina Kirchner, já deu muitos motivos para que os argentinos tomassem as ruas de seu país protestando contra seu governo. Nesta semana, o povo voltou a protestar, já com o slogan na ponta da língua: Yo soy Nisman – "eu sou Nisman", em referência ao promotor federal Alberto Nisman, encontrado morto em circunstâncias muito suspeitas. A pressa do governo em afirmar que se tratou de suicídio e revelações posteriores da investigação da morte tornam quase impossível convencer a população que tomou a Praça de Maio na segunda-feira de que não se tratou de um caso clássico de queima de arquivo.

Em 18 de maio de 1994, a sede da Associação Mutual Israelita Argentina (Amia) foi alvo de um atentado a bomba que matou 85 pessoas e feriu outras 300. As investigações sobre o ataque apontaram como culpado o governo iraniano, e como executor o grupo terrorista Hezbollah. No entanto, até hoje nenhum dos acusados pelo ataque (alguns deles, funcionários da representação diplomática iraniana na Argentina à época do atentado) foi julgado ou punido, apesar de haver ordens de captura emitidas pela Interpol – pelo contrário, alguns deles chegaram a assumir posições de importância no Irã, a ponto de terem se candidatado às eleições presidenciais de 2013 naquele país.

A principal denúncia do promotor Nisman – e aquela que, suspeita-se, está por trás de sua morte – tem a ver com uma reviravolta na postura do governo argentino em relação ao Irã. Se antes a Casa Rosada pressionava por punição, a ponto de o falecido presidente Néstor Kirchner ter denunciado publicamente o Irã durante a Assembleia Geral da ONU em 2007, mais recentemente o governo argentino parecia querer apaziguar as hostilidades. Em janeiro de 2013, a Argentina, já com Cristina Kirchner na Presidência, assinou um memorando de entendimento com o Irã que incluía a criação de uma "comissão da verdade" para investigar o atentado. A comunidade judaica se opôs a esse acordo e foi à Justiça, com apoio de Nisman. Em maio de 2014, o memorando foi declarado inconstitucional.

Poucos dias antes de morrer, Nisman havia entregue sua denúncia: apoiado em horas sem fim de gravações, o promotor afirmava que o memorando de 2013 era resultado de uma operação de acobertamento liderada por Cristina Kirchner e seu chanceler, Héctor Timerman. A "comissão da verdade" seria um teatro destinado a inocentar os iranianos com posições de destaque no governo de Teerã, e em troca as relações entre os dois países ganhariam um impulso que seria muito bem-vindo por parte da Argentina, cada vez mais isolada no comércio internacional e desesperadamente necessitada de dólares.

Nisman foi encontrado morto, com um tiro na cabeça, na madrugada de segunda-feira, o mesmo dia em que ele deveria ir ao Congresso argentino para depor a respeito da denúncia que havia oferecido. As autoridades, na pressa de tratar o caso como suicídio – a própria Cristina Kirchner se manifestou nas mídias sociais nesse sentido –, foram traídas pelos fatos: não havia bilhete de despedida (pelo contrário, havia uma lista de compras para a empregada); nenhum dos agentes da Polícia Federal que faziam a escolta de Nisman estava no local na hora da morte; e não havia vestígios de pólvora nas mãos do promotor (embora isso possa acontecer no caso do tipo de pistola encontrada ao lado do corpo de Nisman). O secretário nacional de Segurança, Sergio Berni, está sendo denunciado por aparecer no apartamento de Nisman antes mesmo da chegada da promotora e do juiz responsáveis pelo caso. A força dos indícios é tanta que Cristina mudou sua própria versão e, na manhã de ontem, escreveu no Twitter: "Estou convencida de que não foi suicídio".

Cristina Kirchner está em seu segundo mandato e não poderá disputar a eleição presidencial de outubro. Sua passagem pela Presidência foi marcada por uma política econômica que fez a Argentina regredir em vários sentidos: os índices de inflação são maquiados grotescamente e ocasionalmente há escassez de produtos nos mercados, resultado de um protecionismo irracional que vem fazendo a Argentina perder disputas na Organização Mundial do Comércio. Por mais que não haja provas de envolvimento ou cumplicidade da Casa Rosada na morte de Nisman, na voz das ruas um governo que os argentinos já consideravam incompetente agora ganha a pecha de criminoso.

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