Beto Richa e o juiz Fernando Fischer.| Foto: /

O texto da decisão judicial que autorizou a prisão preventiva nesta terça-feira (19) do ex-governador Beto Richa (PSDB) destoa dos termos jurídicos encontrados em despachos semelhantes. O juiz Fernando Bardelli Silva Fischer – que já havia mandado prender Richa em setembro do ano passado na Operação Rádio Patrulha – aproveitou a oportunidade para afirmar que o Judiciário precisa “apresentar uma resposta adequada a casos de graves violações.” Fez praticamente um manifesto anticorrupção.

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“Há um pensamento, amplamente difundido na doutrina e jurisprudência brasileira, que insiste em vincular a necessidade da prisão preventiva à contemporaneidade dos fatos criminosos. Tal entendimento, carente de maiores fundamentações racionalmente elaboradas, ecoa sem a devida reflexão crítica, como um verdadeiro mantra da impunidade”, diz um trecho da decisão (confira a íntegra aqui).

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O magistrado cita a recorrência de casos de prisões de pessoas de baixa renda e aborda a falta de uma resposta equânime, por parte do Judiciário, nos casos que envolvem criminosos com poder aquisitivo. “Como juiz, atuante há mais de cinco anos na esfera criminal, sou parte responsável por esse sistema escancaradamente desigual. E por não compactuar com a manutenção do status quo, frequentemente busco encontrar explicações dos motivos pelos quais as segregações cautelares, em sua imensa maioria, são exclusividade das pessoas economicamente desfavorecidas. Parte dessa resposta encontrei na disseminação, no meio jurídico, da ideia de contemporaneidade para a prisão preventiva”, enfatiza no despacho.

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No despacho, o magistrado propõe uma visão mais alargada do conceito de contemporaneidade – usado comumente para definir se uma prisão deve ser autorizada, considerando se os fatos são recentes. Ele afirma que há “resistência do Poder Judiciário em aplicar medidas, como a prisão preventiva, em casos graves de crimes do colarinho branco deriva da ideia da contemporaneidade como requisito intransponível. Tal pensamento, ainda que muitas vezes reproduzido de legítima boa-fé, carrega em seu âmago uma tendência discriminatória de seleção de indivíduos potencialmente encarceráveis”, diz.

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Fischer também alega que os crimes do colarinho branco são complexos e bem elaborados, que exigem investigação mais demorada e difícil. “É inimaginável, por exemplo, que a polícia realize uma prisão em flagrante no exato momento em que um Governador do Estado supostamente se reúna com os seus comparsas para estipular pagamentos de propinas e fraudes à licitação”, pondera o juiz na decisão.

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Além de argumentos constantes em leis brasileiras, para embasar autorizações de prisão, o juiz menciona um manual dos Estados Unidos que lista o nível de gravidade de crimes, usando para calcular, entre outros fatores, o monte que foi desviado dos cofres públicos. Com essa alegação, o caso da Quadro Negro seria gravíssimo, diante da fortuna que teria deixado de ser aplicada em escolas e também do grau de nocividade, a partir da “lesividade social”. Segundo a investigação, a fraude teria prejudicado diretamente 20.132 alunos.

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“O prejuízo causado pelos supostos delitos apurados na ‘Operação Quadro Negro’, tanto sob a perspectiva da qualidade de vida dos alunos diretamente afetados, quando sob a probabilidade do dano social, é incomensurável em razão da sua extrema dimensão. O reflexo social de milhares de jovens que foram tolhidos do seu direito à educação adequada, tornando-os suscetíveis a situações de exclusão e marginalidade, poderá ser sentido ao longo de décadas. Por sua vez, sob o prisma individual, o sonho de um futuro promissor alcançado por meio de uma educação de qualidade, compartilhando entre pais e alunos de baixa renda, é esfacelado para financiar o luxo e a extravagância de poucos privilegiados”, aponta o juiz no despacho.

Como juiz, atuante há mais de cinco anos na esfera criminal, sou parte responsável por esse sistema escancaradamente desigual. E por não compactuar com a manutenção do status quo, frequentemente busco encontrar explicações dos motivos pelos quais as segregações cautelares, em sua imensa maioria, são exclusividade das pessoas economicamente desfavorecidas. Parte dessa resposta encontrei na disseminação, no meio jurídico, da ideia de contemporaneidade para a prisão preventiva

Fernando Fischer juiz que decretou a prisão de Beto Richa na Operação Quadro Negro

O magistrado enfatiza que em outros países os crimes de colarinho branco são punidos com mais rigor, mesmo quando já decorrido um determinado prazo entre o crime e a prisão, e cita o ex-presidente da CBF, José Maria Marín, preso nos Estados Unidos desde 2015 por atos de corrupção que teriam se iniciado em 2012. O texto de 33 páginas conclama a necessidade de decisões mais firmes, sob pena de macular “a imagem do Poder Judiciário, já arranhada em razão da postura muitas vezes leniente frente à corrupção, venha a se desgastar ainda mais.”

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Fischer ainda menciona o voto do ministro Luís Roberto Barroso no Supremo Tribunal Federal (STF) dizendo que “É um equívoco supor que a corrupção não seja um crime violento. Corrupção mata. Mata na fila do SUS, na falta de leitos, na falta de medicamentos. Mata nas estradas que não têm manutenção adequada. A corrupção destrói vidas que não são educadas adequadamente, em razão da ausência de escolas, deficiências de estruturas e equipamentos.”

A responsabilidade do Judiciário também é aventada na decisão lavrada por Fischer. Ele cita que “o instituto das prisões cautelares a fatos recentemente praticados, em verdade está se relegando esta modalidade de prisão aos ‘crimes de pobres’. A crítica a um suposto ativismo judicial, sob o discurso da proteção da democracia, dissimula um vergonhoso ranço discriminatório que em partes explica os motivos pelos quais nossos cárceres estão lotados de pessoas de baixa renda”. E também salienta que “cabe ao Poder Judiciário, em especial aos juízes libertos de qualquer influência política, deixar de entoar os velhos mantras e, em um processo de resistência ética, repelir os altos precedentes que não se alinhem aos ideais de uma justiça equânime, para enfim construir um direito mais democrático e assentando no intersubjetivismo refletido.” Além disso, alega que “reações à mudança se mostram e se mostrarão a cada dia mais evidentes, principalmente vindas do mais alto escalão. Mas a Magistratura não é abrigo para temerosos e muito menos para insidiosos.”

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O despacho termina com uma indireta – clara e evidente – para o ministro Gilmar Mendes, que já concedeu a liberdade para Beto Richa e familiares em outras oportunidades e também deu um salvo conduto impedindo a prisão dele e dos parentes (mas que só vale para dois outros casos). “Felizmente, esta ‘Operação Quadro Negro’ já conta com relatores preventos nos Tribunais, cuja trajetória profissional transparece um alinhamento aos valores democráticos. Assim, o terreno para se assentar um julgamento justo e imparcial passa pela negação de qualquer privilégio não-jurídico, de modo a assegurar de forma transparente os direitos e garantias estabelecidos a todos os acusados, porém aplicando-lhes as medidas que se mostrarem necessárias, sem qualquer espécie de distinção”.

Confira outros trechos da decisão e a íntegra, abaixo:

“Assim, o sentimento de impunidade que ecoa no peito da população e macula a imagem e a credibilidade do Poder Judiciário e das Instituições Públicas, não se ameniza com o passar do tempo. Seja nas ruas ou nas redes sociais, o inconformismo com a impunidade da corrupção cada vez mais reverbera em nosso país. E a percepção, pela população, de que medidas judiciais mais enérgicas não atingem as classes politicamente e economicamente privilegiadas, faz nascer uma sensação de mal-estar em relação ao Poder Judiciário, que se exterioriza por meio de expressões de vergonha.”

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“A consequência disso é que o discurso que prega a exigência da contemporaneidade à decretação da prisão preventiva em casos graves de crimes do colarinho branco praticamente inviabiliza essa modalidade cautelar. E pior do que isso, essa prática judicial representa uma recompensa aos criminosos pela sua vil capacidade de dissimular os seus atos ilícitos. Essa verdadeira ode à impunidade é um estímulo a práticas de outros delitos assessórios, como a lavagem de dinheiro e outras falsidades, dos quais só aqueles criminosos que ostentam uma boa condição econômica e política podem se valer. Assim, o discurso politicamente correto de defesa dos direitos do cidadão é cuidadosamente manejado para mascarar escusas intensões de salvaguardar da prisão a casta de ricos e poderosos. Não por acaso, as manifestações a favor da liberdade de criminosos do colarinho branco, que praticaram seus crimes durante um longo período de tempo, convenientemente citam o ano do início da prática criminosa e omitem a data do seu término.”

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“Não se trata de uma apologia ao encarceramento de pessoas de alto padrão social, nem de uma vedação à análise de critérios temporais para o fim de decretação de prisões cautelares. O que se busca é conferir um tratamento equânime ao instituto da prisão preventiva, retirando-se o véu que contrafaz toda discriminação sistêmica, de modo a permitir que o Poder Judiciário possa apresentar uma resposta adequada a casos de graves violações.”

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“As manifestações a favor da liberdade de políticos acusados de graves delitos de corrupção, apoiadas no discurso da função contramajoritária do Poder Judiciário na defesa dos direitos fundamentais, esconde interesses escusos de manutenção do poder e favorecimentos pessoais. As tentativas de retirar o caráter democrático do direito, ignorando a necessidade de um consenso refletido pela população e concebendo-o como um saber hermético só acessível a uma elite cultural, retiram toda a legitimidade e validade da decisão judicial.”

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“Assim sendo, considerando a gravidade concreta dos desvios narrados e a extensão do dano causado à ordem pública e à ordem econômica, materializado no enfraquecimento da credibilidade do próprio Estado de Direito, bem como nas consequências perniciosas que uma fraude à licitação deste porte gera à iniciativa privada e à livre concorrência, apenas a segregação cautelar dos Investigados se mostra efetiva, neste momento, a estabilizar contrafaticamente as expectativas normativas frustradas com os eventos ora apurados.”

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“Quanto à possibilidade de manter os Investigados em liberdade ou de aplicar alguma medida alternativa à prisão, questiona-se: Qual a resposta adequada que o Poder Judiciário poderia dar frente a um esquema criminoso que movimentou mais de 20 (vinte) milhões de reais? Qual a resposta adequada que o Poder Judiciário poderia dar a cada um dos milhares de estudantes que tiveram seu direito à adequada educação violado para enriquecer ainda mais um pequeno grupo de pessoas? Qual a resposta adequada que o Poder Judiciário poderia dar frente às graves práticas criminosas que supostamente se iniciaram em 2012 e perduraram até 2017? Qual a resposta adequada que o Poder Judiciário poderia dar diante da quantidade de normas diretamente violadas, cuja vigência restou abalada frente à população? Qual a resposta adequada que o Poder Judiciário poderia dar aos milhares de presos provisórios que lotam nossas prisões, acusados por crimes patrimoniais cujos valores somados não chegam perto do montante deste caso? Qual a resposta adequada que o Poder Judiciário poderia dar à sociedade civil imersa num calamitoso quadro de corrupção endêmica que assola nosso país? Qualquer resposta ou medida que não seja a decretação da prisão dos Investigados implicaria no total descrédito do Poder Judiciário frente aos cidadãos e, consequentemente, na confirmação de que o sistema criminal em nosso país só alcança pessoas de baixa renda.”

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