| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo

A Câmara dos Deputados formou uma comissão especial que está discutindo uma proposta para melhorar as ações de combate ao crime no país: a unificação das polícias Militar e Civil. Não é uma ideia nova. Na verdade, é um debate que já dura pelo menos 50 anos. Em plena ditadura militar, em 1967, o governo de São Paulo iniciou um debate interno para fundir as polícias estaduais e estabelecer um comando civil para a nova instituição. Não deu certo. E os obstáculos que impediram a fusão há cinco décadas são semelhantes aos que atravancam a proposta atualmente.

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VEJA TAMBÉM: O que está sendo discutido na Câmara

A ideia de unificar as polícias paulistas durante o regime militar é um assunto pouco conhecido. “As discussões eram a portas fechadas”, diz o advogado Antonio Carlos Ferreira, que à época era delegado, estava lotado na Secretaria Estadual da Segurança e participou dos debates. A explicação para o sigilo é simples: o assunto era delicado demais para se tornar público em pleno regime militar. E com potencial muito grande para desagradar os generais que comandavam o país.

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Dedo na ferida dos militares: o fim da PM

Ferreira explica que, à época, São Paulo tinha três polícias: a Civil (que já operava como hoje), a Guarda Civil (responsável por uma parte do policiamento ostensivo, hoje desempenhado pela Polícia Militar) e a Força Pública (como era chamada a PM até os anos 1960).

Segundo Ferreira, a gestão do então governador Abreu Sodré tinha dois grandes objetivos quando começou a discutir o assunto: ter mais controle sobre suas polícias e também se preparar para enfrentar o crescimento da criminalidade que acreditava que viria a ocorrer.

Foram encomendados pareceres a dois dos maiores juristas brasileiros: Pontes de Miranda e Vicente Ráo. A Gazeta do Povo teve acesso a esses documentos e eles são claros: foi discutida a extinção da Força Pública – numa proposta para fundi-la às demais polícias, criando uma única instituição civil. A pergunta encaminhada aos juristas demonstra isso: “A Constituição de 1967 (...) impõe aos estados-membros a criação e manutenção de Polícias Militares?”

Sim e não

Em seus pareceres, Pontes de Miranda e Vicente Ráo deram respostas diferentes para essa questão. Ráo disse entender não haver necessidade de os estados manterem uma PM. Segundo ele, a Constituição da época apenas reconhecia a existência das PMs e sua consequente sujeição aos limites legais. Pontes de Miranda, ao contrário, afirmou que o texto constitucional da época obrigava os governos estaduais a manterem uma Polícia Militar.

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Mas ambos tiveram posição convergente nos demais assuntos questionados. Eles entenderam que a PM legalmente não era um braço das Forças Armadas. Ou seja, quem mandava na Força Pública era o governo do estado, e não o federal. Os dois também concordaram que o policiamento ostensivo não era exclusivo dessa corporação (podendo ser desempenhado por uma força civil, como a Guarda paulista).

Pressão. E ideia descartada

A ideia original de unificar as três polícias em uma só, com comando civil, acabou naufragando. E a Força Pública continuou quase como estava. “Tinha muito interesse contrário à unificação”, diz Ferreira. Principalmente do Exército, que pretendia manter seu poder de influência no estado com a manutenção da Força, uma instituição militar.

A Lei Orgânica das Polícias de São Paulo, aprovada em 1968, manteve as três instituições. Mas, segundo o advogado, o governo paulista conseguiu ao menos uma vitória: o comando delas formalmente passou a ser do secretário estadual de Segurança – abrindo a possibilidade de um civil coordená-las, embora vários ocupantes da pasta à época tenham sido coronéis do Exército.

Apenas dois anos depois, em 1970, ocorreu uma unificação policial em São Paulo. Mas no sentido contrário do que havia sido discutido: Guarda Civil e Força Pública se fundiram criando oficialmente a Polícia Militar. “Na verdade, foi uma extinção da Guarda”, diz Ferreira. A maioria de seus integrantes, diz ele, foi incorporada pela Polícia Civil.

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Fogo trocado: PM diz que culpa é dos civis. E Civil diz que é dos PMs

Policiais militares e civis não se entendem nem mesmo sobre quem seria o “culpado” por criar obstáculos para a unificação. PMs dizem que são os civis. E vice-versa.

O presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol-Brasil), Carlos Eduardo Benito Jorge, afirma ser a favor de uma instituição unificada com um grupamento fardado para fazer o policiamento ostensivo. Mas ele entende que o problema para a proposta avançar é a PM, que não abre mão da militarização policial. A militarização, diz ele, garante alguns privilégios, como previdência diferenciada e julgamentos no Judiciário por uma instância exclusiva: a Justiça Militar.

O cabo Elisandro Lotin, da Associação Nacional dos Praças, afirma o contrário. Embora diga não ser contrário à proposta em si da unificação, Lotin acredita que a atual discussão para unir as polícias faz parte de um lobby de delegados para desviar o foco de outro ponto que ele considera mais fundamental: a instituição do chamado ciclo completo e da carreira unificada.

Nós não podemos falar em unificação das polícias se as próprias polícias não são unificadas.

Cabo Elisandro Lotin presidente da Associação Nacional dos Praças

Do patrulhamento à investigação

Uma polícia de ciclo completo é aquela responsável por todas as fases de um crime: desde a sua prevenção (com o patrulhamento) até a investigação quando ocorre um delito. Hoje isso não ocorre, pois a PM faz o policiamento ostensivo de rua e a Civil, a investigação criminal.

Já a carreira única significa que qualquer policial recém-admitido na instituição pode, em tese, chegar ao seu comando. Atualmente, isso também não é verificado tanto na PM (que mantém a divisão interna entre oficiais e praças) quanto na Polícia Civil (delegados e investigadores). Ou seja, um praça nunca chegará a coronel da PM. E um investigador nunca poderá ser delegado. São carreiras distintas. E, segundo o cabo Lotin, os delegados não querem mudar seu status quo dentro da Polícia Civil.

Ele afirma que não adianta unificar as polícias se elas continuarem divididas internamente: “Nós não podemos falar em unificação das polícias se as próprias polícias não são unificadas”.

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